terça-feira, 30 de dezembro de 2008

2008/2009

2008 foi um ano com:

21 mil quilômetros rodados entre Goiânia e Brasília

260 horas de aulas nas carteiras da UnB

60 encontros de orientação de três formandas da Católica

Um apartamento novo

Quase 3 mil reais de gasto com um carro velho

50 pessoas queridas dentro do apartamento novo

Quase 40 especiais de domingo

15 dias de férias

Banhos de mar em São Luís

Passeios nas ruas de Paraty

Quase 80 noites dormidas em casas de amigas em Brasília

Roteiro cultural em São Paulo

Incontáveis partidas de sinuca ganhas e perdidas

Quase 50 livros de teoria lidos

Maior intimidade com Foucault, Weber, Heidegger e Peirce

Uma crônica por mês

Um bocado de carência afetiva

Uma mudança de casa

Uma mudança de planos profissionais

Um grande afago no ego profissional

Algumas noites de depressão

Algumas saudades não satisfeitas

Alegrias e preocupações com os sobrinhos

Nenhuma grande matéria

Alguns sonhos para 2009

Em 2008, sonhar foi possível e necessário.
Em 2009 temos que continuar sonhando. Mesmo que os sonhos não se realizem
Feliz sonhos novos

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

"Essa rua tá estreita"



"Essa rua tá estreita..."
E vai o pau d´água, o pudim de cachaça, o pé de cana barbeirando no meio da via pública. É Deus que não deixa ele dar com as fuças na calçada. Vai desviando de lixeiras, vai espantando cachorros que latem assustados, vai escorando nos postes, pegando fôlego para continuar. Vai apalpando os bolsos já sebentos das calças já largas que cobrem um corpo já combalido pelo vício, procurando algo que já não possui.

É sempre um homem de muitas casas. Cada boteco, uma morada. Cada dose conquistada de um cliente incauto ou louco para se ver livre da encheção de saco dos pedidos feitos em língua dormente, uma vitória. É sempre um homem que acumula muitas vitórias diárias.
Também é um homem que tem freqüentes visões do paraíso. Entra nos bares e passa o olho mole e remelento, vermelho de tanto álcool, por prateleiras em que rebrilham o que mais deseja: a cachaça.

O bêbado de rua não reclama da cama, que pode ser qualquer coisa. Um pedaço de papelão, uma mesa de sinuca que dorme no alpendre de um bar, um cantinho da sarjeta. É uma pessoa que valoriza cada centavo, porque cada centavo equivale um tantinho mais de pinga no copo. É um homem que tem muitos amigos, afinal, chega com aquela intimidade grudenta em qualquer desconhecido que lhe atravesse o caminho.

É também um homem religioso, sempre guarda um pouquinho pro santo. Não para os filhos que precisam ser sustentados pela mãe ou por uma das avós, que quase morrem de trabalhar para comprar leite e pão para a molecada. Mas para o santo, para esse não falta. E o bêbado se sente o homem mais digno do mundo ao jogar um bocadinho da pinga no chão, comove-se com sua própria grandeza.

O bêbado é um homem de opinião e a dá sempre quando ninguém a pediu. Costuma pegar o bonde andando e, geralmente, cai. Mas cair, de alguma forma, faz parte de sua rotina. Joelhos e cotovelos já estão para lá de acostumados com a falta de equilíbrio do resto do corpo. O pinguço gosta de palpitar sobre política, sobre economia, sobre futebol e, se deixam, até sobre a mulher do próximo. "É uma vagabunda!"

Ah, sim, o bêbado também apanha. Do marido da "vagabunda" ou de qualquer outro que perde a paciência com seu estilo entrão, com seus trejeitos de atrevimento, do jogador de bilhar que não agüenta mais os comentários inconvenientes em torno da mesa, do freguês já saturado de tanto ouvir do cachaceiro que ele gosta de beber sim e que ninguém tem nada a ver com isso; que sua saúde é de ferro, omitindo que já bota os bofes pela boca pelo menos uma vez ao dia e que já não agüenta de dores nas juntas.

O bom de copo toma no frio para esquentar, no calor para refrescar, no domingo porque é dia de folga, na segunda para dar coragem, na quarta porque trabalhou muito, na sexta porque é sexta. Não faltam justificativas para encher a cara, fazer caretas quando a pinga desce rasgando, para se gabar, já embriagado, de que não fica bêbado nunca, que é mais forte que um touro; que quando quiser parar, pára; que é dono de seu destino.
O pau d'água, o pudim de cachaça, o pé de cana é ou não é uma instituição? Uma instituição que mal cabe em si. E mal cabe na rua também...
"Essa rua tá estreita..."

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Odeio Adesivos, Graças a Deus



Vocês já perceberam o quanto as pessoas têm necessidade de gritar em público, chamar a atenção de desconhecidos, se fazer notar na multidão? Alguns poucos têm a coragem necessária para dar uns berros no meio da rua, rir alto, contar piadas a quem nunca viu mais gordo. Outros – a maioria – encontra outra forma: pregam adesivos nos carros. E devo confessar que a mim seria mais agradável ter os tímpanos estourados por um descompensado do que, a toda esquina, ter que me deparar com os arremedos de frases de caminhão que circulam por aí.

A lista é longa e é preciso reconhecer que em alguns casos há alguma originalidade nos recados que ninguém pediu para receber. Uma vez, em uma Brasília caindo aos pedaços, li a seguinte frase: "prefiro carro velho que andar de ônibus". Eu concordo. Andar de ônibus em Goiânia é um castigo do purgatório. Dos males, o menor.

Mas a maioria dos adesivos não tem tanto humor. São apenas metidos a engraçadinhos. "Rastreado por fofoqueiros". Ha... ha... há... Que engraçado, não é mesmo? Que espirituoso!!!!! Chega a ser genial!!!!!!! A pessoa que coloca uma bobagem dessas no carro se acha. Ah, se acha! Acha que todo mundo se importa com sua vida, que todos não têm nada mais para fazer que ficar espionando-o.

O adesivo de carro que mais me irrita é o que faz menção à religião do ocupante. Muitos evangélicos gostam de pregar o seguinte aviso: "Deus é Fiel". E quem disse que Ele não é? E quem perguntou? Quando a discussão sobre a fidelidade de Deus foi colocada em pauta?
Tem outros que são mais apocalípticos: Jesus voltará!!! Gostaria muito de saber como estas pessoas têm tanta certeza disso. Alguém ligou avisando que Jesus está a caminho? Como é que eles sabem? Será que têm alguma linha direta com o Céu pela qual recebem informações privilegiadas?

Um dos piores adesivos, em minha opinião, é o que anuncia: "sou católico graças a Deus"! Mesmo? Que coisa, não? E o que o pobre pedestre tem a ver com isso? Que utilidade essa informação tem para os outros? Isso dá alguma espécie de salvo-conduto ao motorista, que já teria alcançado a Salvação na Vida Eterna, Amém? E "ser católico graças a Deus" me parece um tanto redundante. Graças ao capeta é que não seria, concordam? E o engraçado é que esse pessoal coloca tais adesivos demonstrando a sua fé, mas muitos deles vivem por aí xingando o motorista da frente, dando fechadas no condutor que vem atrás, passando por faixas de pedestres sem parar. Mas o adesivo está lá, firme, dando ares de santidade ao carro.
No meu veículo tem uns adesivos também, confesso. Um de lavajato, outro de um shopping e um terceiro, todo embolorado, com a imagem da Virgem Maria.

"Ahan!!!! Então quer dizer que você também tem um adesivo religioso no carro e fica falando mal dos outros", devem estar pensando aqueles que se sentiram atingidos pela crônica.
Sim, tenho. Mas este adesivo está pregado há tanto tempo que não sai mais. Já tentei, juro por Deus! Juro pelo que há de mais sagrado neste mundo que já tentei me livrar do adesivo mariano. Esse adesivo me persegue tanto que estou pensando em colocar meu carrinho santificado à venda, com adesivo e tudo. Algum católico, graças a Deus, estaria interessado em adquiri-lo?

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Dona Iraci Vai Cair de Novo

Adoro Dona Iraci, essa mulher que criei a partir de tantas que andam por aí... Caindo.


– Minha filha, você não devia ter dito aquilo pra Dona Iraci. Já falei pra você não bater boca com vizinho.
– Mas, mãe, dessa vez essa fofoqueira da Dona Iraci passou dos limites! A senhora viu o que ela falou de mim lá no chá de panela da Laura?
– Ela não falou por mal, Lourdinha.
– Ela não falou por mal!? Não falou por mal!? Mãe, ela me chamou de encalhada, disse que do "jeito" que eu ando na rua, nunca que eu vou arrumar homem pra casar!
– É que ela é muito franca, filha. É o jeito dela.
– Franca o escambau. Aquela mulher é uma cobra. Disse que a minha saia é muito curta, que eu ando muito maquiada. Velha invejosa, isso sim!
– Não fala assim, Lourdinha. A Dona Iraci é uma pessoa de certa idade e sofreu aquele acidente horrível no ônibus, coitada. Deve ter batido a cabeça.
– Pois deveria ter quebrado a cabeça mesmo e não apenas a cabeça do fêmur! Bem feito pra ela!
– Lourdinha, pára com isso. A gente não deve desejar mal a nenhuma pessoa. Tem muita gente que gosta da Dona Iraci.
– Dona Iraci não é "pessoa" coisa nenhuma. É uma bruxa! Feia como o cão! Com aquelas pernas cheias de varizes, com aquele monte de sacolas que ela anda por aí.
– Coitada, ela fez uma cirurgia nas veias, não lembra? Andou de meia kendall um tempão. Mas aí as varizes voltaram...
– Também, a diaba não guardou repouso. Ficava por aí zanzando atrás de alguma fofoca. Não sossega o facho.
– Mas minha filha...
– Pára de defender a Dona Iraci, mãe. Pois fique sabendo que um dia ela me chamou de sádica, disse que duvidava que eu tivesse nascido de uma mãe...
– Aquela lambisgóia disse isso?
– Disse sim senhora.
– Mas, mas...
– Vai, defende a velha fuxiqueira, defende...
– Mas eu vou mostrar pra aquela bucha de canhão quem é que não tem mãe! Aquela filha de chocadeira vai se ver comigo...
– Aonde a senhora vai, mãe? Espera... Mãe... Volta aqui...
– Me deixa Lourdinha, vou lá acertar as contas com a Dona Iraci.
– Mas a mulher tá entrevada na cama, com pino na perna.
– Não interessa. Ela vai ver com quem mexeu. E te digo uma coisa, Lourdinha. Do jeito que eu tô nervosa, conforme for, hoje a Dona Iraci vai cair de novo.

sábado, 8 de novembro de 2008

É uma cadela



Vamos celebrar nossa vaidade



Lili, tão bonitinha. Parece uma princesinha. Branquinha, cheirosinha, arrumadinha. Vestido branco para o seu aniversário de um aninho. Meu bebê. Gud, gud!!!! Parece até que já entende que tudo isso é pra ela. Menina esperta! Todos os seus amiguinhos foram convidados. Todos aqueles que brincam com ela no parque, no play do condomínio fechado em que mora. Lacinho rosa na cabeça, perfume francês especial para a ocasião. Um bolo exclusivo foi encomendado na confeitaria que sempre organiza as festas da família. Tenho certeza de que ela vai adorar essa receita de bolo de filé (?!) E os brigadeirinhos de ração importada, então (????!!!!!!)


É, Lili é uma cadelinha de uma raça impronunciável, mais feia que a morte. Mas a dona a acha linda e não percebe que se o bicho gostasse da fruta, seria o próprio capeta chupando manga. Mas é a Lili, a xodozinha da madame, aquela que tem todas as mordomias, a paparicada, que tem até uma babá. Por tratar a cadela como gente, a patroa trata a babá como cachorro. Mas quem pode, pode, não é mesmo? Vamos celebrar nossa vaidade em suas mais absurdas demonstrações de afetação.


Mas há horas em que essa gente tão ocupada em divertimentos caninos se cansam, sabe? Cansam, cansam... Dizem assim: cansei! Dondoquices e afetações cansam, acha que não? Ir a cabeleireiro fazer penteados vistosos, empastar o rosto de maquiagem, cuidar do modelo do vestido, ir a Nova York, esquiar em Aspen, escolher o carro novo, preparar aniversário de cachorro. UFA!!!! Claro, tem ainda a bala perdida, tem o desemprego, a violência, a fome. Claro, eles também se preocupam com isso. Fazem até chás beneficentes para cuidar do assunto com as amigas. Aproveitam para falar mal das ausentes, fofocar sobre possíveis traições na alta roda, mas comparecem com as contribuições que mostram toda a generosidade que têm.


Uma generosidade para os despossuídos que dá, mais ou menos, uns 20% do que a dona da Lili gastou com a cadelinha de luxo. Mas a Lili é como um membro da família. Merece a festinha, ora. Ou você acha que é fácil cuidar de um cachorro de raça, que precisa estar cercado de todos os cuidados. É como uma criança. Branquinha, peludinha, cheirosinha, com vestidinho e laço rosa. Coisa mais linda, Lili!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O Rei do Domingo



"Agora é hora, de alegria. Vamos sorrir e cantar. Da vida não se leva nada. Vamos sorrir e cantar."

Era assim, com um monte de pom-pons coloridos, que "as colegas de trabalho" de um certo apresentador anunciavam, oficialmente, que o domingo começava.
Domingo sem Sílvio Santos? Impossível, inconcebível, inadmissível. Gerações e gerações (aí incluída a minha) já associaram o final de semana ao mais famoso e duradouro apresentador da TV brasileira. Com aquele seu porte altivo, seu jeito particular de gesticular, sua voz bem colocada e sua indefectível risada, Senor Abravanel (nome verdadeiro do Homem do Baú) entra em nossa casa, na maior intimidade.

A imagem já está um tanto desgastada e a audiência não é mais a mesma, mas quem se importa? Sílvio mantém um certo poder hipnótico, que não é quebrado nem quando ele fala a maior das barbaridades. E olha que não são poucas. Parece que ele faz tudo de propósito, até cometer as gafes que comete. Mas em Sílvio Santos mesmo os escorregões soam naturais porque ele tem uma espécie de licença especial para dizer o que quiser. Afinal, é "O Patrão".

Há programas que ele apresentava que nem existem mais. Estão aí os antológicos Domingo no Parque, em que uma multidão de meninos desembestados disputava quase a tapa um par do tênis Montreal. E o que dizer da Porta da Esperança, em que Sílvio, numa clara demonstração de sadismo, deixava os participantes à beira de uma síncope antes de revelar que eles iam sim ganhar o tratamento médico ou o fogão novo. Sem falar do mais clássico de todos, o Show de Calouros.

"Aracy de Almeida, lá. Lá, lá, lá, lá, lá", e vinha a velha cantora, com uma fealdade incrível, que em nada lembrava a musa de Noel Rosa.

"Wagner Montes, lá. Lá, lá, lá, lá, lá", e vinha o galã do corpo de jurados, mancando ostensivamente com seu jeito de machão.

"Pedro de Lara, lá. Lá, lá, lá, lá, lá", e vinha aquele senhor fazendo uma falsa cara de rabugento, com um buquê de flores horríveis e um rabo de cavalo absurdo.

E naquele palco Sílvio recebia o humorista Ary Toledo e suas piadas impróprias para menores, fazia a propaganda do filme da Sessão das Dez – "eu não vi, mas minha mulher viu e disse que é muito bom" –, chamava o Lombardi – "é com você, Lombardi" – e entrevistava os transformistas que imitavam a Liza Minelli e a Maria Bethânia sempre com aquela perguntinha indiscreta: "você é ele ou é ela?". Também tinha um povo esquisitão, que tocava um gongo em um programa jurássico dos Estados Unidos; e ainda um quadro com ares de sobrenatural: "Isto é Incrível!!!!!!!!!"

Só depois de todos esses barbarismos que o domingo poderia acabar, na santa paz da família. O domingo tinha mesmo que acabar, afinal Sílvio Santos já havia saído do ar. Mais, só semana que vem. E na semana que vem... "Agora é hora, de alegria. Vamos sorrir e cantar."

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Na minha casa


Nunca fui muito partidário de usar este espaço para falar de coisas estritamente particulares, de experiências essencialmente pessoais, de vivências do âmbito privado. Mas para toda regra...

Vou falar de algo que tem ocupado boa parte do meu já escasso tempo nos últimos meses: minha casa nova.


Na verdade, um apartamento. Um cantinho pra chamar de meu que me endividou até o pescoço e tem feito com que eu inaugure, de fato e de direito, um outro estágio da minha vida.

Tardiamente vou viver só. A solidão é algo que para mim, um sujeito melancólico e carente, combina bem. Eu me identifico com os solitários por saber valorizar momentos que não devemos compartilhar.


Mas a minha casa não será só minha. Não quero que seja. Não pretendo que seja. A minha solidão será respeitada sobretudo por mim, mas este apê, que venho montando com esforço, carinho, paciência e insegurança desde o final de maio, terá um tapete de feira na porta de entrada com aquela inscrição que muitos acham meio brega (eu também, confesso), mas que significa muito: Seja Bem Vindo.


O melhor de ter a nossa casa não é usar o banheiro com a porta aberta, andar de cueca pela casa, ter total controle do controle remoto. O melhor é poder convidar pessoas queridas para entrar nela, para estar dentro dela juntamente com você. São estas pessoas que dão movimento ao imóvel, que nos deixam lembranças, que nos dão alegrias e confiam a nós seus problemas. São os amigos, os queridos amigos, aqueles que são tão essenciais como o ar.


O apartamento é pequeno e não cabe todos dentro ao mesmo tempo. Nestes dias em que quero boa parte dos meus grandes amigos limpando os pés no tapete de feira da porta, estou ansioso por recebê-los e feliz pelo mesmo motivo. Lá estarão meus amigos, aqueles a quem estimo, aqueles com quem quero compartilhar mais do que uma conversa animada em minha sala recém-mobiliada. Assim como o apê, eles são "meus", fazem parte do "meu" patrimônio e deles não abro mão.


Não há melhor decoração para uma casa nova do que amizades verdadeiras. Como diz o tapete: Sejam Bem Vindos

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Pontos de Interrogação


Há momentos na vida em que é preciso decidir e aí bate a dúvida. O que fazer?


Tenho três caminhos a seguir.


Tenho que decidir. E agora?


Um ponto de interrogação está longe de ser apenas um sinal gráfico...


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sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Para quem gosta de reparar os outros


O observador


Ele adorava ficar observando as pessoas. Crítico ao extremo, guardava para si uma opinião quase sempre desabonadora sobre o vizinho, o colega de trabalho, o sujeito que se sentava ao seu lado no ônibus. E sua astúcia em encontrar defeitos era diabólica. Identificava as varizes nas pernas da senhora gorducha, reparava nos dentes espaçados do jovem tímido que respirava pela boca, ficava atento às unhas carcomidas da mulher que usava chinelo de dedo. Fazia ilações perniciosas sobre manchas na pele do senhor à sua frente na fila do banco, não tirava os olhos do cabelo mal tingido da dona de casa de meia idade, sabia até quando alguém usava uma roupa puída ou mal costurada.

Todo este senso de observação o colocava em grande isolamento. De tanto destacar os defeitos alheios, todos passaram a ser meio repugnantes para ele. Sempre havia um porém nas garotas que lhe sorriam, nos conhecidos que tentavam ser simpáticos, em qualquer pessoa que ensaiasse uma aproximação. Ele refutava todos. Seja pelas mãos calosas dos mais velhos ou pela falta de jeito dos mais jovens, seja pelos pelinhos do nariz do empregado ou pelo perfume forte do patrão. Ninguém era perfeito o suficiente para ele.

Mas não costumava se olhar no espelho. De manhã, molhava o rosto sem se encarar, penteava o cabelo rapidamente para não se estudar muito, tinha resistência em experimentar roupas nas lojas por conta de sua própria imagem no provador. De tão observador, temia se olhar e descobrir, uma a uma, todas as suas imperfeições.

Uma mulher, porém, começou a vê-lo com outros olhos, a observá-lo com interesse. Ela morava no mesmo prédio e de vez em quando tinham encontros casuais no elevador. Ele já a havia definido como baixinha demais e de sobrancelhas irregulares. A vizinha, por sua vez, o encarava como um pequeno animal raro, cheio de vontades e um pouco acuado. Sim, ele tinha um sinal desagradável no pescoço, sua colônia era enjoativa, seu corte de cabelo era antiquado e suas roupas eram excessivamente limpas e sempre combinadinhas. Defeitos para ela, sem dúvida, mas todos eles assimiláveis.

Um dia eles trombaram na saída do elevador. Foi um encontrão acidental que o levou, pela primeira vez, a olhar nos olhos de outra pessoa. Ali não importou a roupa, a maquiagem, o estado do cabelo, da pele. Contou apenas o olhar que ela lhe lançou. Ela o observava mais fundo do que ele próprio já havia observado alguém. Ela tentou fotografar sua alma, tudo aquilo que ele, tão expert em detalhar as aparências alheias, sequer desconfiava que poderia ser visto.
Se eles terminaram juntos? Claro que não, jamais dariam certo.

Se ele perdeu sua mania de observar os outros? Claro que não, hábitos tão arraigados não se perdem em um encontrão. Daquele dia ficou para ele apenas uma lembrança: "logo logo aquela moça vai precisar fazer uma cirurgia de catarata".

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Um gênio


Depois de mais de um mês de ausência, volto a postar algo aqui no blog. Gostaria de ser mais assíduo, mas anda um pouco difícil. De qualquer forma, aos amigos, mais um pouco do que penso e do que gosto.


O Grande Chaplin


"Longa é a tarde, longa é a vida. De tristes flores, longa ferida. Longa é a dor do pecador, querida." Estes versos são da música Querida, de Tom Jobim. Foi com ela que tive contato pela primeira vez com uma cena que nunca mais esqueceria. Era um homem pequeno, de bigodinho ridículo no rosto, brincando com um enorme globo terrestre. Era Charles Chaplin em uma tomada clássica do filme O Grande Ditador. Tinha 14 anos. Vi aquela cena, com aquela trilha sonora, porque as duas estavam juntas na abertura de uma novela, O Dono do Mundo, da Rede Globo.

Jeito mais "indústria cultural" de tomar conhecimento de um gênio, não? Mas, neste caso, o meio pouco importa. O que valeu mesmo, pelo menos para mim, foi ver Chaplin em uma das mais belas críticas ao ditatorialismo já imaginadas.

Das trivialidades podem vir as maiores revelações. É o inesperado que muda referências, que ensina. Aquele inesperado me ensinou a admirar o homem que talvez tenha sido o maior entre os maiores do cinema. E dali conheci O Grande Ditador, obra-prima com cenas como a que Chaplin, num arremedo maravilhoso de Hitler, disputa em altivez em uma cadeira de barbeiro com o não menos satírico Mussolini. Há também aquela do discurso final, pacifista, que Chaplin teria incluído de última hora, deixando o tom predominantemente cômico da fita e passando a falar muito sério, já com as primeiras informações confiáveis das atrocidades nazistas em seus ouvidos.

A seqüência que mais marca, porém, é mesmo a de Chaplin bailando com a humanidade. Algo tão simples, até um pouquinho patético, e com uma simbologia tão assustadora. É a abdicação da obviedade, é o passo de dança que define os destinos do mundo. Quanta representatividade em uma cena que parece tão simples, picaresca até. É o cinema em estado puro, uma das formas mais eficientes de se passar uma mensagem, defender uma idéia, representar a vida no universo da fantasia.

E Chaplin fez isso tantas e tantas vezes... Nas engrenagens amalucadas, engolidoras de gente de Tempos Modernos; no bater de dentes de A Corrida do Ouro; nas ternas trapaças de O Garoto. São filmes que não posso adjetivar adequadamente. Seria injusto com produções tão ricas em sentido, tão cheias de possibilidades. Prefiro ficar com minha admiração, altamente impressionista, por O Grande Ditador. Vou me ater a um Hitler genérico correndo pelos telhados e um Hitler de pastiche com os trejeitos de um Napoleão do século 20. Um trabalho original até para os modelos de hoje, quando continuam sendo poucos aqueles que conseguem encontrar de fato uma linguagem própria, que conquistam a vitória de encantar com o gesto mais trivial, o ato mais simples e humano.

Chaplin já se foi há 30 anos. Podemos voltar a Tom Jobim: "O dia passa e eu nessa lida. Longa é a arte, tão breve a vida."

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Joseph Barbera





Esse texto eu publiquei na ocasião da morte de Joseph Barbera, um dos magos dos desenhos animados. É um texto simples, mas que me trouxe tantas e doces recordações que resolvi dividi-lo com vocês.




Dívida Impagável

Não. Não é possível saldar uma dívida de tantos anos. Não é fácil pensar em algo que possa se equiparar a tanta alegria, a tanta magia, a tantos vôos da imaginação. Não, senhor Joseph Barbera. Serei para sempre seu devedor. Seu e de seu parceiro William Hanna. Mas tenho certeza de que esta é uma dívida que jamais será cobrada, nem de mim e nem de milhões de outras pessoas que assim como eu se divertiram, riram, se afligiram e sonharam com mundos outros que não este ao assistirem às suas dezenas de criações na telinha.
Com muita ludicidade, o senhor nos deu momentos de intensa e genuína felicidade na infância, na adolescência e, por quê não confessar, também na idade adulta. Sua vida terrena que se encerrou na última segunda-feira, em Los Angeles, aos 95 anos, senhor Barbera, foi tão proveitosa para tantas gerações que a morte se apequenou diante do legado deixado. Seus desenhos animados podem estar de luto, mas a tristeza nunca combinou com eles. Não seria agora que ela se imporia. Quantas criaturas maravilhosas o senhor nos apresentou, senhor Barbera. A quantas viagens extraordinárias o senhor nos levou por meio de seu traço? Com o cartão de visitas que o senhor deu a todos os seus fãs, conheci um mundo distante habitado pelos Herculóides, em que rinocerontes atiravam pedras biônicas e um gorila de pedra defendia crianças.

Viajei pelo espaço a bordo da nave de Space Ghost. Fui ao passado presenciar a rabugice de Fred Flintstone e a fidelidade de Barney. E que surpresa tive quando descobri que naquela época os freios dos carros eram as solas dos pés dos motoristas, que Fred trabalhava no lombo de um brontossauro e que o cachorro de estimação daquela família se chamava Dino. Não sei dizer quantas vezes desejei ter um igual no quintal de casa... E a força hercúlea de Bambam e a doçura e inteligência de Pedrita? Na relação de amizade entre os vizinhos, uma mensagem implícita para todas as idades.

E o que dizer do futuro então? Os Jetsons e sua empregada robô, seu cachorro com antenas, o caçula Elroy e suas invencionices. É difícil dizer para quem eu torcia nas eternas perseguições de Tom e Jerry. Não sabia direito quem era o herói ou o vilão. Havia dias em que eu era partidário do rato. Em outros, do gato. Mas do cachorro Scooby-doo e de seus amigos Salsicha, Fred, Daphne e Velma... destes eu seria um fiel escudeiro... se pudesse, claro. Um dos meus sonhos de meninice era participar de uma caça ao fantasma como aquelas a que eu assistia. Como adoraria ter um cachorro falante e covarde como Scooby.

A mesma simpatia tinha pelo gato Manda-Chuva e seu molejo malandro, com aquele ar de quem tem sempre a situação sob controle. Morria de rir das estripulias que ele armava para o guarda Belo naquele beco que poderia ser em qualquer lugar. Guarda? Alguém falou em guarda? Ou seria "seu gualda"? Sim, é ele mesmo. Zé Colméia, o urso mais viciado em guloisemas da história do Parque Jellystone. Com o companheiro Catatau, este camarada gente boa aprontava todas e algumas mais. Ele tinha um jeitão todo sestroso que marcou outras criações suas, senhor Barbera, como o rosado Leão da Montanha – sempre saindo pela direita –, o crocodilo Wally Gator – sempre dando um jeitinho de fugir do zoológico –, e o leão Lippy – acompanhado da hiena pessimista Hardy – "ô dia, ô vida, ô azar".

Tinha ainda a famosa Clementina da música cantada por Dom Pixote, o tartaruga espadachim Touchê, a viola maluca de El Cabong, o disfarce desastrado do cavalo Pepe Legal. Uma das coisas que nos ensinou, senhor Barbera, de forma muito delicada e bonita, foi o respeito ao diferente, à personalidade de cada ser vivo que nos cerca. Do baixinho Babalu ao grandalhão Tutubarão, da biônica Formiga Atômica ao neurastênico coelho Ricochete.

Mesmo seus personagens cheios de falcatruas, senhor Barbera, exerciam um fascínio especial. O que dizer, por exemplo, de Dick Vigarista e o cão Mutley/Rabugento – "medalha, medalha, medalha" –, em suas presepadas para ganhar a Corrida Maluca ou para capturar o pombo com a desmiolada Esquadrilha Abutre. Ou o Gargamel, o implacável perseguidor dos Smurfs. Mas estes eram totalmente compensados com heróis como Jonny Quest e Hadji, os garotos detetives, sempre escoltados pelo cão Bandit. Ou pela bonita relação entre Bobby Pai e Bobby Filho – "Oh, meu querido e magnânimo pai."

Seria impossível aqui, senhor Barbera, relembrar tudo que gostaria. Os gritos malucos do Capitão Caverna, a Sala de Justiça dos Super-Amigos, as deduções excêntricas de Olho Vio e Faro Fino e os resmungos de Zé Buscapé. Como vê, senhor Barbera, minha dívida é mesmo impagável. E é melhor que seja assim. Esta é o melhor débito que já contraí e dele não quero me livrar nunca.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Sinuca de bico



Adoro jogar sinuca e bilhar (sabia que há diferenças entre os dois?) Por isso, fiz essa crônica descrevendo uma partida de bilhar. Espero que gostem.

A arte da guerra... No bilhar

Os oponentes se encaram. Olhos nos olhos e o único pensamento possível: vencer.
"Vamos jogar uma partidinha?"

É hora de escolher as armas do duelo. O taco mais reto, com a cabeça em melhores condições, no peso certo. De preferência, aquele de estimação, que tem uma marquinha na madeira para diferenciá-lo dos demais.

As bolas são postas no pano verde. O barulho do marfim se tocando é a senha para os curiosos se aproximarem.

É hora de espalhar as bolas e tentar matar alguma na primeira tacada, forte e cheia de efeito. Ás colado na tabela, o jogo começa. São 14 bolas para morrer.

Com técnica, o jogador que saiu mata a 2 azul no canto. E já está de olho na 14 verde que ficou reta em outra caçapa. É hora de estudar o jogo. Matar descolando a 10 que está na tabela para pegá-la no meio. Mais uma bola morre, e outra. Com efeito, sobe o bolão e pega a 4 roxa lá em cima, ajeita a 6 verde no meio e rola a 8 preta para a boca. Ótimo início. Só tem uma mal posicionada, a 12 roxa, entre duas bolas rosas, a 5 e a 13, do adversário. É hora de seu oponente mostrar a que veio.

Ele começa com uma bola difícil, longa, mas a 3 vermelha entra na caçapa de metal fazendo barulho. Com técnica, ele deu uma "paradinha" no bolão, deixando a 7 marrron reta no meio. Matando-a com meia-força, descola a 11 vermelha, ajeitando-a no outro canto. A mata com força pegando "na bunda" a 9 amarela. Outra bola morta. É hora de rolar a 15 marrom para a boca e deixar o adversário abrir o jogo.

É a arte da guerra. Todas as jogadas são minuciosamente estudadas. Os dois precisam se defender. Em torno da mesa, eles se movem como dançarinos, numa coreografia não-ensaiada. A forma como seguram o taco mostra o nervosismo. Mãos suadas exigem o uso do giz branco.
Quem mata as pares deixa seu 8 na boca e bate, de leve, no 12, tentando abrir só sua bola. Cola o 5, mas deixa o 13 para o adversário. Ele agradece, mata a bola e rola o 5 para a boca. Já são três caçapas ocupadas. Em jogada espetacular, quem mata as pares corta a 12 por fora, matando-a no meio. Mas o bolão acaba morrendo também. É suicídio e o jogo é castigado. Sai a menor bola do oponente, a 5 que está na boca. Agora, resta o 15, que ele mata com efeito, esbarrando no ás. Mas ele fica no rumo da caçapa onde está o 8. É hora do prego.

Devagarzinho ele estaciona o bolão atrás do ás. Ao adversário resta matar o 8 sem triscar na bola amarela. Se cegar, perde o jogo. Depois de muitos cálculos, a única saída é fazer o bolão correr toda a mesa, bater em três tabelas e matar a bola. Jogada complicada, quase impossível. Mas com perícia, ele a executa com perfeição. Agora, quem matar o ás, ganha. O combate terá um vencedor.

Meia hora depois, os dois já estão tomando uma cervejinha juntos e falando de futebol. Quem ganhou aquela guerra? Que guerra que nada. Era só uma partida de bilhar.

domingo, 29 de junho de 2008

Um jornalismo de ainda...

Por quê o jornalismo?
Essa pergunta, acredito, persegue a todos que, de fato, se importam com a profissão.
Ela vem me acompanhando e me encontrando em muitos papéis. Estudante, profissional de redação, professor. Os argumentos vieram mudando no decorrer do tempo, na medida em que a experiência de profissão ensinava algo.

Sim, os anos de profissão trouxeram uma certa descrença em determinadas situações, alguma insatisfação pessoal e um calejamento do lombo, tão alvejado por pressões de toda ordem.
Mas sabem de uma coisa? Se o jornalismo não for assim, não tem muita graça. Um certo tesão sadomasoquista? Pode ser. A grande magia do jornalismo, porém, é estar perto do diferente, do que não faz parte de seu cotidiano. É compreender as pessoas que vai encontrando pelo caminho.

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodovar, cores de Frida Kahlo, cores

O bom é não saber o nome de todas as cores, é descobrir tantas tonalidades, é ainda ter a capacidade de se surpreender, de se indignar, de se emocionar com as pessoas, com as situações, com os lugares que o jornalismo proporciona encontrar.

Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus

É bom passear pelo escuro, não ter idéia do que vai encontrar ou ouvir ao sair para uma pauta, ao conversar com uma pessoa. É bom sentir-se o elo que liga uma realidade escondida ao restante das pessoas que ainda a desconhecem. É bom chegar antes e anunciar algo que ninguém ainda sabia. É bom sinalizar para problemas que estão sendo ignorados, é bom filtrar informações inverídicas.

Transito entre dois lados
De um lado, eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro

O jornalismo é transitar entre todos os lados, é evidenciar os opostos, é expor, mostrar. Jornalismo para mim ainda tem algo de mágico, algo de intangível e de inclassificável. Ainda não perdi todas as minhas ilusões. Ainda gosto de me desafiar a escrever um texto gostoso, a tentar tirar de um entrevistado algo que ele nunca disse a ninguém, a defender os direitos de quem não os exerce, a comentar uma obra interessante, conversar com pessoas que tenham algo a dizer. Minha visão de jornalismo ainda é caloura, ainda é crente, ainda é boba. Não conseguiria fazer algo que não tenha o mínimo de ludicidade, de criação. Mesmo que tenha "remoto controle" sobre muita coisa nesse processo, ainda quero fazer parte dele, espernear, argumentar, entristecer-me e realizar-me no ofício que escolhi. Ainda...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Espetáculo estranho


É possível viver algo e sentir exatamente o contrário daquilo que se deveria estar sentindo em determinada situação?

Acho que sim...


As conquistas não são poucas. Mais até para um ano que, de alguma forma, por certos sinais imperceptíveis à platéia, pressagiava mudanças.

Elas estão vindo, não decepcionaram.


E virão ainda mais. Talvez mais até do que o diretor desse espetáculo chamado vida particular poderia imaginar.

O roteiro está bom, o público aplaude, mas...

Mas...


Esse mas que não some. Irritantemente persistente.

Ingratidão com o que a vida oferece, com as oportunidades que vão surgindo... E o diretor não sabe lidar bem com os elogios da crítica, não se convence de que sua produção está dando certo.

Permanece triste na coxia, como se tudo estivesse errado.


Imprevistos existem, mas não deveriam ser tão superdimensionados.

Alguns atores com que contamos podem não agir como o diretor prevê. Se omitem, se escondem, não querem subir ao palco, têm encenações mais importantes em que pensar.

Outros, que estão sempre por aí, como fantasmas da ópera, costumam aparecer de vez em quando. Mas tudo isso deveria fazer parte do show, só isso.


Entre comédias e tragédias, entre cenas cômicas e dramáticas, para o diretor deveria ser mais importante que a peça continuasse em cartaz, de alguma forma agradando a si e a quem de fato importa. Mas... Ele continua lá, cabisbaixo, vendo o copo sempre meio vazio.


Estranho, muito estranho esse espetáculo de viver.

domingo, 1 de junho de 2008

Crônica da Dona Iraci

Esta crônica foi publicada e gerou reações iradas. Uma leitora escreveu uma carta dizendo que eu era sádico e colocando em dúvida a existência de minha mãe, já que apenas um desalmado poderia ter escrito o que escrevi.
Eis a crônica da discórdia.



Dona Iraci vai cair


Uma vez a cada quinze dias, dona Iraci vai no Centro fazer compras. Compra tudo o que vê, a infeliz. Volta para casa com um monte de sacolas de plástico nas mãos. Tem um mau-gosto desgraçado. Sempre sobe no ônibus por volta das 4 da tarde, quando o coletivo ainda não está muito cheio. E dona Iraci gosta de viajar sentada. Também, com aquelas pernas varizentas. Ela se esparrama no banco, aquela gorda, e fica soterrada com aquele monte de sacolas.
Mas naquele dia, dona Iraci bobeou. Bem feito. A folgada passou pela catraca e quis se sentar lá na última fileira, na traseira do ônibus. Que erro terrível, dona Iraci! Lá foi ela, atulhada de sacolas, mastodôntica, em busca do banco vazio quando, de repente, o ônibus freou bruscamente. E veio voltando dona Iraci, de ré, catando cavacos de costas. Todo o caminho percorrido desde a catraca ela ia refazendo, só que agora sem rumo, sem nada para se apoiar. É, dona Iraci vai cair. Hoje, essa miserável cai.
"Estava tão próxima", pensava dona Iraci, "tão perto daquele banco. Maldita freada. Onde é que eu vou parar, meu Deus", se perguntava ela. "E se eu me machucar no tombo, Virgem Maria. Como é que vou fazer a janta hoje, como é que vou pegar o Diogo na creche. Também, a Amália encosta, viu. Arruma filho sem pai e estrepa a mãe. Por quê ela mesma não pega o filho. Tudo nas costas da avó besta aqui".
Dona Iraci reclamava em pensamento, mas isso não a ajudava. Amaldiçoar os paspalhos dos passageiros que não faziam nada para ampará-la não evitava o destino final. E bem que ela merece um destino trágico. "A catraca. Jesus amado, vou rachar o coco na catraca. Ou então vou quebrar os dentes em alguma quina de banco. Não tenho dinheiro para ficar colocando dente novo não." Dona Iraci, dona Iraci... A senhora não toma jeito mesmo. Prestes a se estabacar e pensando em miudezas. Mas seu pensamento é miúdo, né, dona Iraci? Miudezas vão se espalhar todas pelo piso do ônibus. Os colares de contas vão se esfacelar, aquele jogo de copos americano vai virar caquinhos, o lençol barato vai rasgar.
É, dona Iraci, não tem jeito, a senhora vai cair. Vai se esborrachar no chão como um saco de batatas, vai se estatelar no piso do ônibus, vai virar os cambitos pra cima, vai dar vexame na frente de desconhecidos, mostrar a anágua, a calçola, tudo, dona Iraci.
Mas dona Iraci merece esse tombo. É reclamona, maledicente, fofoqueira. Espalha mentiras sobre os vizinhos. Tem vergonha da filha que é mãe solteira, vive jogando isso na cara da coitada. Agora a freada do motorista fará justiça. Dona Iraci, com todas as suas tranqueiras, vai pro chão, vai ruir, vai desabar como um prédio velho. Vai dona Iraci, cai logo, desgramada. Tomara que trinque a bacia, que pise colocar pinos no braço. Senão, do que terá valido subornar o motorista do coletivo, pagando para ele dar essa freada quando a filha da mãe dessa xexelenta passasse pela catraca. Ah, Dona Iraci. A senhora me paga, diaba velha. Todas as mentiras que espalhou de mim na vizinhança, todas as insinuações maldosas, todos os prejuízos que sofri. Pagará com juros. Hoje Dona Iraci vai cair.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Uma pequena crônica sobre o tempo

A ficha caiu


Ouvindo Chico Buarque, me deparei com o inexorável:
"Eu acho que vou desligar
As fichas já vão terminar"
Dois versinhos bobos, nem tão bonitos assim da música Bye, Bye, Brasil me fizeram pensar mais do que um tratado de filosofia inteiro.
As fichas já vão terminar? Fichas? Que fichas?
Para qualquer adolescente de hoje falar em fichas – nestas fichas – é uma aberração. Como assim? Se ligava de telefone público com fichas?
Pois é. Era assim mesmo que nós, os mais... digamos... experientes, usávamos o velho e bom orelhão.
Cartão? Que mané cartão. Isso não existia tempos atrás. Era com a famosa fichinha de metal, do tamanho de uma moeda, que as ligações eram feitas em aparelhos públicos, num tempo em que ter uma linha de telefone em casa significava um investimento financeiro.
Aquela fichinha que sumia dentro das bolsas das mulheres, que os homens deixavam cair do bolso das calças e que pareciam nunca ser suficientes para fazer as ligações que precisávamos fazer. Elas eram colocadas na parte de cima dos aparelhos e quando a ligação se completava – algo que poderia muito bem não acontecer –, um barulhinho dela caindo dentro do depósito de fichas do telefone sinalizava que a pessoa iria sim conseguir falar com o parente distante. A ficha havia caído.
Me lembro que estas fichas eram, ao mesmo tempo, úteis e desprezadas. Era fácil encontrá-las jogadas nas ruas, em ralos de pias, perdidas no fundo de alguma gaveta pouco aberta.
Fico me perguntando onde foram parar tantas fichas? Que destino este fóssil tecnológico teve? Onde está este instrumento pré-analógico na era digital? Será que existe alguém que coleciona fichas telefônicas ou elas estão fadadas ao esquecimento total, restritas a menções enigmáticas em uma canção dos anos 70? Possivelmente sim. Mas a ficha telefônica serve a outro objetivo. Ela é uma prova de que o tempo passa, de que o tempo voa... Serve para a gente perceber que... Bem, é melhor deixar pra lá. Não vamos encompridar a conversa não. A ficha já caiu, tá bom!

domingo, 27 de abril de 2008

Dez leituras

Leia Vinícius de Moraes e se convença: falar de amor vale a pena


Leia García Márquez e faça uma homenagem aos ricos recantos da memória



Leia Guimarães Rosa e dobre seus joelhos ante a fabulosa força da linguagem



Leia Clarice Lispector e mergulhe na radiosa viagem pelos sentimentos soberanamente triviais


Leia William Faulkner e se espante com a falta de limites da maldade humana


Leia Machado de Assis e se encante com o uso perfeito da ironia

Leia Thomas Mann e aprenda a maestria de saber contar uma história

Leia Dostoiévski e se confronte com as muitas facetas da alma, escondidas em cada um de nós


Leia Virginia Wolf para saber que a tristeza carrega em si uma grande parcela de beleza


Leia Mario Quintana para descobrir que as coisas podem ser mais simples do que parecem

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A vida ensina

A vida ensina, mas muitas vezes a gente não aprende. Não aprende a priorizar as pessoas certas, a investir nas relações que valem a pena, a não querer de outros o que você deseja e sim o que eles podem oferecer. História complicada essa. Nos últimos dias tenho pensado muito nisso e, como o cara que sempre promete iniciar um regime na segunda-feira, fico me desafiando a mudar, a melhorar nesse aspecto.

Digo a mim mesmo: Rogério, não tome os outros por você; Rogério, não se importe com quem não se importa com você; Rogério, olhe bem e veja quem de fato merece sua atenção. É uma equação estranha e complicada. Se criticamos pessoas por determinadas atitudes, querendo que elas as mudem, acabamos, muitas vezes, nessa obsessão pela mudança alheia, esquecendo que nós também precisamos mudar nossas próprias ações, que pode haver alguém que deseja exatamente a mesma coisa e você ainda não percebeu.

Há pessoas que são especiais e dão grandes provas de coragem, que lhe dão grandes lições. Estou recebendo uma dessas nesse momento e isso acabou me serenando um pouco. Ao olhar para os problemas de pessoas que, de fato, gostam de você, aí é que percebemos que muitas de nossas preocupações são bobas, infantilidades e perdas de tempo. Mesmo passando por grandes provações, há pessoas que ainda conseguem dar demonstrações explícitas de carinho, apreço e atenção. São a essas pessoas que devemos nos dedicar, em quem devemos pensar, a quem devemos retribuir. A vida ensina. Um dia a gente aprende.

domingo, 6 de abril de 2008

O Leão e o Bode




Somos movidos a desafios. Alungs maiores, outros menores. Alguns importantes, outros totalmente idiotas. Alguns gratificantes, outros nem tanto. Cumpri um desafio profissional e, como disse uma de minhas muitas chefes, "tirei o bode da sala". Mas não foi só o bode que saiu da sala. Foi mais um leão abatido. Um leão que matamos todo dia, todo dia, todo dia, sem falta.Essa vida de matador de leões é complicada, mas acho que fui eu mesmo quem a buscou. Sou movido a desafios, a leões rugindo na minha orelha, a bodes que entram e saem da minha sala. Acho que acabei me acostumando.
Recentemente, abracei mais uma juba e estou tentando pegar outro bicho fedido pelo chifre. Tudo ao mesmo tempo. A vida vai ficando ocupada, mas ela também vai passando.Esses dias tenho pensado nisso. Talvez tarde demais... Mas se a vida vai passando e os bichos não saem de nossos pés, ocupando um tempo em que poderíamos estar vivendo, o que fazer? Não sei a resposta. Sei matar leões e expulsar bodes da minha sala. Faço isso com alguma competência e bastante empenho. O resultado não é dos piores. Mas é preciso admitir: cansa!!

quarta-feira, 12 de março de 2008

Não é à toa que a música chama-se PERFEIÇÃO







Vamos celebrar
A estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja
De assassinos
Covardes, estupradores
E ladrões...

Vamos celebrar
A estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso estado que não é nação...

Celebrar a juventude sem escolas
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião...

Vamos celebrar Eros e Tanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade...
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta
De hospitais...

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras
E seqüestros...

Nosso castelo
De cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia
E toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã...
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração...

Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado
De absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é anormal
Vamos cantar juntos
O hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
Comemorar a nossa solidão...
Vamos festejar a inveja
A intolerância
A incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente
A vida inteira
E agora não tem mais
Direito a nada...

Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta
De bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isto
Com festa, velório e caixão
Tá tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou
Essa canção...

Venha!Meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão]
Venha!O amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha!Que o que vem é Perfeição!...

domingo, 9 de março de 2008

Sentir-se querido



O exercício da amizade é uma arte. Uma arte muito delicada, cheia de detalhes, de intenso labor, mas que, como toda arte com essas características, quando feita com a atenção devida e a vontade requerida, geralmente resulta em uma obra ímpar.

Tenho bons amigos. Pessoas que admiro e que me ensinam aquela que talvez seja a maior de todas as artes: a de viver melhor. Ontem, encontrei-me com algumas dessas pessoas e elas, com o carinho, o afeto, os sorrisos e abraços que me deram, conseguiram recarregar minhas baterias para o que vem pela frente.

A conversa franca, o sorriso verdadeiro, o despudor em dizer que gosta da gente, que estava com saudades, que está feliz em encontrá-lo de novo é o que mais conta nas amizades que valem. O olhar de torcida para que seus planos dêem certo, a satisfação em saber que você está prestes a fazer uma conquista, o compartilhar dessa vitória, tudo isso prova o que é a amizade.

Esses amigos são valiosos para o meu momento atual. Muitos desafios pela frente (pessoais, acadêmicos e jornalísticos). Animado para superá-los devagar, sem pressa, aprendendo com cada um deles. E com os amigos de fato por perto. Vamos juntos.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Só alguns comentários bestas

Só porque a Amandita me chamou de "genial" porque escrevo crônicas, resolvi queimar a língua dela e provar, que na verdade, na verdade mesmo, sou muito mais estúpido do que algumas, caridosas e amigas, pessoas pensam.

- Dizem que para conhecer uma pessoa é preciso dar poder a ela. Concordo, mas outra forma eficiente de se aferir isso é contrariar a pessoa em teste. Contrarie a pessoa, não dê a ela o que deseja, atravanque seu caminho de propósito. Se ela esconde alto, certamente vai se revelar.

- É impressionante como as pessoas, em tempos de mudanças, tornam-se egoístas. A generosidade e a comunhão são dois exercícios muito, muito difíceis em situações normais. Em momentos atípicos, de stress, essas são qualidades praticamente inexistentes.

- Quando alguém pergunta sobre sua vida, sobre como será sua rotina, quando quer saber mais sobre um desafio profissional ou pessoal que você tem que enfrentar, nem sempre o interesse é bem intencionado. Tem gente que só sabe sabotar psicologicamente os outros, entre sorrisos falsos e desejos de boa sorte. Não devemos mesmo julgar os outros por nós mesmos. Nem por nossos defeitos e muito menos por nossas qualidades.

- A angústia e a tristeza, nos seus significados mais literais, estão cada vez mais presentes hoje em dia. Como diz a música, "um dia feliz, às vezes é muito raro." Não podemos deixar esses estados de espírito imperar o temoo todo, mas também não vale a pena lutar demais para bani-los. Eles, em muitos momentos, são educativos.

Eu avisei. São comentários bestas e estúpidos. Mas é que a gente precisa dividir coisas assim. Mesmo que seja com ninguém.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Retratos do cotidiano

Sempre encarei a crônica como pequenos instantâneos do cotidiano, em que uma linguagem mais solta, literária, se une à observação do mundo com um pouco de faro jornalístico. Não sei se estou certo ou não, mas tento fazer algo próximo a isso nessas primeiras incursões pelo gênero. Mais um resultado dessas experiências para vocês. Obrigado a todos pelo carinho e pelas visitas.


O Ernesto não tem jeito

Não, não tem jeito. O ano acabou e o Ernesto não se emenda.
Se ele bebe muito? Nada, só socialmente, como dizem.
Se ele trai a mulher? Bom, isso eu não sei.
Mas não são sobre os pecadilhos cotidianos que estou falando não. O problema do Ernesto é mais estrutural. Ele teve uma vida tranqüila, sem grandes porres ou amantes conhecidas, mas aí é que está o grande problema do Ernesto. A vida dele foi, é e vai continuar sendo muito tranqüila. Quer dizer, tranqüila sob um certo ponto de vista. Para a família dele, nada de tranqüilidade não. Há até uma dose de tormento, isso sim.
Se ele bate na mulher? Não, pára de pensar só o pior dos outros.
Se bem que o que o Ernesto faz não deixa de ser um tipo de agressão. É um tabefe psicológico, podemos dizer. O Ernesto, com aquela mania de economizar, de comprar casa para alugar, de deixar patrimônio para os filhos, não viu a vida passar. E ainda por cima tapou a visão da pobre da mulher dele. Por isso ela ficou amarga e os dois hoje, já caminhando para a velhice, só querem saber de brigar.
Mas aturar o Ernesto, todos estes anos, criando os filhos deles da forma mais regrada possível, mesmo a família podendo esbanjar um pouco mais, não deve ser mole não. Até entendo a rabugice da Socorro.
“Dinheiro não dá em árvore”; “não sou sócio da Celg, apaguem essas luzes”; “este ano não vamos viajar porque estou apertado.” Estas são algumas das frases que Ernesto repetiu como um mantra por toda a sua vida. E nem agora, com os filhos criados, todos já fora de casa, com a despesa bem menor e os aluguéis todos entrando direitinho na conta, o Ernesto não toma prumo.
Acredita você que ele não comprou presentes, neste Natal, nem para os netos pequenos?
E você acredita que o Ernesto continua a trabalhar feito um mouro para obter lucros de longo prazo? Ele incorre em erros que já perduram um longo tempo. O tempo de uma vida.
Em 2007, o Ernesto choveu no molhado em relação a seus defeitos. Não melhorou em nada. Até deu um pioradinha. É torcer agora para que em 2008 o Ernesto tenha de fato, pela primeira vez em toda a sua vida, um Ano Novo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Centenário duplo



1908 foi um tanto sui generis na literatura brasileira. Nele, morreu um gênio e nasceu outro. Isso parece banal – e vai ver que é mesmo –, mas não deixa de ser uma grande coincidência que um mesmo ano marque o fim da vida daquele que é considerado o maior escritor brasileiro e, simultaneamente, seja a data de nascimento do único autor que conseguiu ombrear com o que acabara de morrer.

Na verdade, é uma incorreção. Os dois foram contemporâneos. Por apenas três meses, mas foram. Como viram aí em cima, refiro-me a dois gigantes: Machado de Assis e João Guimarães Rosa.
Difícil dizer quem foi maior. Difícil afirmar se houve um maior nesta dupla.
Asseguro apenas que os dois são os autores mais fantásticos que já li.
Não que tenha lido muita coisa, mas do que li até hoje, Machado e Rosa estão no topo.
Mas não pense você que vou ficar em cima do muro não. Tenho uma preferência sim. E ela é por Guimarães Rosa. Depois que conheci a obra do escritor mineiro, relutei muito em aceitar esta minha verdade. Machado de Assis, o autor que durante muito tempo idolatrei acima de todos os outros, perante Rosa, descia um degrau em meu pedestal particular. Um degrau apenas, mas descia.
Machado de Assis representa o que há de mais irônico em nossa literatura. Seu humor é fino, inteligente; sua crítica aos costumes, mesmo que tenha ficado um pouco datada em alguns aspectos, continua sagaz e estimulante. Ele é um revolucionário de seu tempo. Criou um narrador defunto em Memórias Póstumas de Brás Cubas muito antes de Pirandello escrever O Falecido Mattia Pascal. E Pirandello ganhou um Nobel por sua arte narrativa.
Em Dom Casmurro, Machado se apoiou em Shakespeare para mostrar o quanto as intrigas da cozinha ou os fantasmas medíocres do ciúme podem ser trágicos. E fez isso muito melhor que Eça de Queirós (de quem não gostava) em Os Maias.
Esaú e Jacó é um romance maravilhoso, com metáforas extremamente sutis e cortantes. Os gêmeos Pedro e Paulo lutam desde o útero e matam juntos uma mulher. E depois se desculpam, também juntos, de todos os seus pecados. E, amorais, tornam-se deputados. Bem sugestino, não?
E os contos de Machado de Assis são ainda melhores. Pai contra Mãe é o maior libelo contra a escravatura já escrito no País, mais até que O Navio Negreiro, a saga poética de Castro Alves. A Teoria do Medalhão é um murro no estômago das elites políticas nacionais. A Igreja do Diabo é um tratado de filosofia em forma de ficção.
Então, Machado é o maior...
Mas há um Rosa... E há um jagunço letrado chamado Riobaldo. E há uma linda guerreira-homem chamada Diadorim. E há a encarnação do diabo na pele de Hermógenes. E há tantos e tantos perdidos no meio do sertão semi-ficção que seria impossível listar todos. É impraticável medir a grandeza de um dos maiores monumentos literários já escritos. Sem falar em Sagarana, em Outras Estórias, em Corpo de Baile.
Grande Sertão: Veredas, porém, é incomparável. Quem diz isso não sou eu. São pessoas como Antonio Candido, o maior crítico literário vivo do Brasil. Quem diz isso é o professor Willi Bolle, um alemão que se mudou para cá apenas para estudar a obra, apaixonado que ficou ao lê-la em sua língua natal.
E como não ficar? A construção de tudo – personagens, enredo, linguagem – é tão firme, poética, bela, que, quando lia o livro pela primeira vez, perguntei-me várias vezes como era concebível estruturar uma narrativa como aquela. Não sei. Ninguém sabe. Só Rosa sabia.
Quem me conhece um pouquinho que seja sabe de minha adoração pelo livro. Ele me deu a oportunidade de fazer a reportagem mais gratificante de minha vida, a mais trabalhosa, a mais apaixonante que já fiz. Me embrenhei no sertão de Rosa, assim como ele fez na companhia de vaqueiros mineiros, e me joguei de cabeça naquele que considero ser o trabalho mais bem acabado que já realizei. Era um compromisso que tinha com o jornal em que trabalho, com os colegas envolvidos no projeto, comigo mesmo enquanto repórter. Mas, principalmente, um compromisso com Guimarães Rosa. Uma forma de agradecer, de retribuir o enorme bem que ele me fez ao escrever o livro mais lindo e intenso que já li.
Machado, outros séculos de paz em seu descanso.
Rosa, muitos outros centenários de lembranças e homenagens.
Aqui vai o meu agradecimento a dois escritores que fizeram toda a diferença em minha vida.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Crônica

Como eu havia dito, aqui será um espaço também para mostrar alguns dos meus textos. Inaugurando, a primeira crônica minha publicada no jornal O Popular, em novembro do ano passado.



Dona Luísa, Seu Onofre


A risadinha banguela era sempre protegida com a mão, assim como o cabelinho estava sempre debaixo de um lenço estampado. Miudinha, Dona Luísa transpirava inocência. Destas inocências que a gente não encontra mais. Destas inocências em extinção, que não se sabem sequer inocentes. Ela tinha um chinelo velho, mas muitas vezes dava milho às galinhas, descalça mesmo, se unindo mais uma vez a uma terra que ela sabia cuidar. Dona Luísa tinha boa mão para a horta, para a criação.

Na época que Dona Luísa habitava uma casa que um dia tinha sido caiada de branco, com piso de chão batido, a menos de um quilômetro dela, do outro lado do córrego vivia Seu Onofre. Ao chegar na casa dele, lá onde sempre havia uma doce água de moringa e um bom dedo de prosa para oferecer, Seu Onofre vivia com sua velha esposa e duas irmãs que todos ali chamavam de "bobas". Mas era um adjetivo sem ofensa, sem maldade. Não tinha disso ali não. O ambiente era doce. Doce pelo reinado de uma certa resignação construída em uma vida dura, sem luz, sem grandes confortos. Mas também doce porque Seu Onofre fabricava rapaduras. Um melado dourado, mágico. "Decepar a cana, recolher a garapa da cana." Era este o ofício de beleza que ele tinha. As rapaduras de Seu Onofre eram famosas.

E dona Luísa já adoçou muito café com elas. E com ele já conversou muito sobre o passado, sobre os conhecidos que sumiram, sobre os pais que morreram, sobre tempos pretéritos e preocupações mais ou menos presentes. Ambos tinham no rosto a marca do tempo e da força que fizeram para viver. Ambos carregavam cicatrizes de perdas, o peso de lembranças boas e más. Dona Luísa e seu Onofre viveram seu tempo. Não estão mais aqui. Suas casas velhas têm outra ocupação hoje. Mas deixaram algo além de descendências. Os dois ficaram na lembrança de mais alguém, que ainda menino se encantava com aqueles dois. Com dona Luísa ainda mais. Ela que adorava cumprir grandes distâncias a pé e andava ligeira que ela só. Dona Luísa que oferecia a quem gostava gestos de carinho, como reservar os melhores ovos de suas galinhas poedeiras, a melhor hortaliça. Dona Luísa que cedinho estava no curral ajudando a apartar bezerros, que cozinhava para os homens da casa que trabalhavam na roça.

Dona Luísa, Seu Onofre. Que Deus os tenha. E que Ele nunca jogue fora a forma em que fez gente como vocês.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Estréia

Oi, gente. Quer dizer, nem sei se alguém vai ler isso aqui... Mas se ler, estou estreando meu blog e espero que ao menos os amigos dêem uma passada por aqui de vez em quando para perder um pouco de tempo comigo. Idéias, reflexões, comentários, algumas crônicas. Não prometo muito mais que isso não. Prometo ser sincero no que escrever. Isso eu posso assegurar. Se terá relevância ou não, aí caberá a cada um julgar. E se não tiver, não tem problema. O mais importante é se expressar. E é isso que quero fazer aqui, compartilhar este direito de me expressar com outras pessoas. E que as outras pessoas se sintam totalmente à vontade para fazer o mesmo neste nosso pequeno espaço na rede. Por enquanto é isso. Mas em breve haverá mais.
Abraço a todos