terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Centenário duplo



1908 foi um tanto sui generis na literatura brasileira. Nele, morreu um gênio e nasceu outro. Isso parece banal – e vai ver que é mesmo –, mas não deixa de ser uma grande coincidência que um mesmo ano marque o fim da vida daquele que é considerado o maior escritor brasileiro e, simultaneamente, seja a data de nascimento do único autor que conseguiu ombrear com o que acabara de morrer.

Na verdade, é uma incorreção. Os dois foram contemporâneos. Por apenas três meses, mas foram. Como viram aí em cima, refiro-me a dois gigantes: Machado de Assis e João Guimarães Rosa.
Difícil dizer quem foi maior. Difícil afirmar se houve um maior nesta dupla.
Asseguro apenas que os dois são os autores mais fantásticos que já li.
Não que tenha lido muita coisa, mas do que li até hoje, Machado e Rosa estão no topo.
Mas não pense você que vou ficar em cima do muro não. Tenho uma preferência sim. E ela é por Guimarães Rosa. Depois que conheci a obra do escritor mineiro, relutei muito em aceitar esta minha verdade. Machado de Assis, o autor que durante muito tempo idolatrei acima de todos os outros, perante Rosa, descia um degrau em meu pedestal particular. Um degrau apenas, mas descia.
Machado de Assis representa o que há de mais irônico em nossa literatura. Seu humor é fino, inteligente; sua crítica aos costumes, mesmo que tenha ficado um pouco datada em alguns aspectos, continua sagaz e estimulante. Ele é um revolucionário de seu tempo. Criou um narrador defunto em Memórias Póstumas de Brás Cubas muito antes de Pirandello escrever O Falecido Mattia Pascal. E Pirandello ganhou um Nobel por sua arte narrativa.
Em Dom Casmurro, Machado se apoiou em Shakespeare para mostrar o quanto as intrigas da cozinha ou os fantasmas medíocres do ciúme podem ser trágicos. E fez isso muito melhor que Eça de Queirós (de quem não gostava) em Os Maias.
Esaú e Jacó é um romance maravilhoso, com metáforas extremamente sutis e cortantes. Os gêmeos Pedro e Paulo lutam desde o útero e matam juntos uma mulher. E depois se desculpam, também juntos, de todos os seus pecados. E, amorais, tornam-se deputados. Bem sugestino, não?
E os contos de Machado de Assis são ainda melhores. Pai contra Mãe é o maior libelo contra a escravatura já escrito no País, mais até que O Navio Negreiro, a saga poética de Castro Alves. A Teoria do Medalhão é um murro no estômago das elites políticas nacionais. A Igreja do Diabo é um tratado de filosofia em forma de ficção.
Então, Machado é o maior...
Mas há um Rosa... E há um jagunço letrado chamado Riobaldo. E há uma linda guerreira-homem chamada Diadorim. E há a encarnação do diabo na pele de Hermógenes. E há tantos e tantos perdidos no meio do sertão semi-ficção que seria impossível listar todos. É impraticável medir a grandeza de um dos maiores monumentos literários já escritos. Sem falar em Sagarana, em Outras Estórias, em Corpo de Baile.
Grande Sertão: Veredas, porém, é incomparável. Quem diz isso não sou eu. São pessoas como Antonio Candido, o maior crítico literário vivo do Brasil. Quem diz isso é o professor Willi Bolle, um alemão que se mudou para cá apenas para estudar a obra, apaixonado que ficou ao lê-la em sua língua natal.
E como não ficar? A construção de tudo – personagens, enredo, linguagem – é tão firme, poética, bela, que, quando lia o livro pela primeira vez, perguntei-me várias vezes como era concebível estruturar uma narrativa como aquela. Não sei. Ninguém sabe. Só Rosa sabia.
Quem me conhece um pouquinho que seja sabe de minha adoração pelo livro. Ele me deu a oportunidade de fazer a reportagem mais gratificante de minha vida, a mais trabalhosa, a mais apaixonante que já fiz. Me embrenhei no sertão de Rosa, assim como ele fez na companhia de vaqueiros mineiros, e me joguei de cabeça naquele que considero ser o trabalho mais bem acabado que já realizei. Era um compromisso que tinha com o jornal em que trabalho, com os colegas envolvidos no projeto, comigo mesmo enquanto repórter. Mas, principalmente, um compromisso com Guimarães Rosa. Uma forma de agradecer, de retribuir o enorme bem que ele me fez ao escrever o livro mais lindo e intenso que já li.
Machado, outros séculos de paz em seu descanso.
Rosa, muitos outros centenários de lembranças e homenagens.
Aqui vai o meu agradecimento a dois escritores que fizeram toda a diferença em minha vida.

5 comentários:

Fellipe Fernandes disse...

Não sei porque razão, mas fazendo um balanço de minhas leituras descobri que nunca li nada do Guimarães Rosa... fiquei até envergonhado, juro! Quanto ao Machado, ele me influencia até hoje. Já devo ter relido Dom Casmurro e Helena uma dezena de vezes. Até brinco, às vezes, que tenho um caso mal resolvido com ele...rs E acho que não vou resolver nunca!
Abraço!

Unknown disse...

Eu prefiro o Guimarães Rosa, inclusive pelo meu apreço natural pelos mineiros...:) Mas estou em uma fase de reler os clássicos do Machado de Assis. Comecei (ou recomecei) por Esaú e Jacó, os gêmeos que brigaram dentro da barriga da mãe.

Amandita disse...

Oi Doutor! Nossa Rogério, visitando teu blog me dá ainda mais saudades dos livros em português. Não trouxe nada, minha mala não cabia! Cara, tô lendo 1984, do George Orwell em inglês. Ai tô quase desistindo...Ah nem...

Ana disse...

Oi, Rogério

Que lindo o seu envolvimento com a literatura.

Machado (e o livro que ele dedica aos vermes...)Guimarães Rosa. Mas, fui rendida, um dia, pelo mundo genial da descrição do Graciliano Ramos em sua "Vidas Secas".

lelecog disse...
Este comentário foi removido pelo autor.