domingo, 24 de fevereiro de 2008

Retratos do cotidiano

Sempre encarei a crônica como pequenos instantâneos do cotidiano, em que uma linguagem mais solta, literária, se une à observação do mundo com um pouco de faro jornalístico. Não sei se estou certo ou não, mas tento fazer algo próximo a isso nessas primeiras incursões pelo gênero. Mais um resultado dessas experiências para vocês. Obrigado a todos pelo carinho e pelas visitas.


O Ernesto não tem jeito

Não, não tem jeito. O ano acabou e o Ernesto não se emenda.
Se ele bebe muito? Nada, só socialmente, como dizem.
Se ele trai a mulher? Bom, isso eu não sei.
Mas não são sobre os pecadilhos cotidianos que estou falando não. O problema do Ernesto é mais estrutural. Ele teve uma vida tranqüila, sem grandes porres ou amantes conhecidas, mas aí é que está o grande problema do Ernesto. A vida dele foi, é e vai continuar sendo muito tranqüila. Quer dizer, tranqüila sob um certo ponto de vista. Para a família dele, nada de tranqüilidade não. Há até uma dose de tormento, isso sim.
Se ele bate na mulher? Não, pára de pensar só o pior dos outros.
Se bem que o que o Ernesto faz não deixa de ser um tipo de agressão. É um tabefe psicológico, podemos dizer. O Ernesto, com aquela mania de economizar, de comprar casa para alugar, de deixar patrimônio para os filhos, não viu a vida passar. E ainda por cima tapou a visão da pobre da mulher dele. Por isso ela ficou amarga e os dois hoje, já caminhando para a velhice, só querem saber de brigar.
Mas aturar o Ernesto, todos estes anos, criando os filhos deles da forma mais regrada possível, mesmo a família podendo esbanjar um pouco mais, não deve ser mole não. Até entendo a rabugice da Socorro.
“Dinheiro não dá em árvore”; “não sou sócio da Celg, apaguem essas luzes”; “este ano não vamos viajar porque estou apertado.” Estas são algumas das frases que Ernesto repetiu como um mantra por toda a sua vida. E nem agora, com os filhos criados, todos já fora de casa, com a despesa bem menor e os aluguéis todos entrando direitinho na conta, o Ernesto não toma prumo.
Acredita você que ele não comprou presentes, neste Natal, nem para os netos pequenos?
E você acredita que o Ernesto continua a trabalhar feito um mouro para obter lucros de longo prazo? Ele incorre em erros que já perduram um longo tempo. O tempo de uma vida.
Em 2007, o Ernesto choveu no molhado em relação a seus defeitos. Não melhorou em nada. Até deu um pioradinha. É torcer agora para que em 2008 o Ernesto tenha de fato, pela primeira vez em toda a sua vida, um Ano Novo.

3 comentários:

Deire Assis disse...

É infalível. Não tem jeito. Me desculpe se esse exercício não deve ser feito... Mas acho que já vi você falar do Ernesto (de carne e osso).

Bárbaro! Parabéns! Beijo!

Deire.

Sassine disse...

massa!

Fellipe Fernandes disse...

Rogério,
a sensação que eu tenho é que estou rodeandos de Ernestos e, com certo receio de, quem sabe, cada vez mais, estar me transformando em um também. Um tanto pior, considerando que, tempo vai, tempo vem, as perversões que tenho que ir administrando para viver ileso, ainda que esfolado (como os bêbados que saem da bar às 7h da manhã), acabam por me botarem uma dúvida na cabeça: por mais que os sonhos de ano novo ainda ressoem na alma, será que já não estou vivendo muito do mesmo?
Será este um pensamento muito rodrigueano?
Abraço.