Esta crônica foi publicada e gerou reações iradas. Uma leitora escreveu uma carta dizendo que eu era sádico e colocando em dúvida a existência de minha mãe, já que apenas um desalmado poderia ter escrito o que escrevi.
Eis a crônica da discórdia.
Dona Iraci vai cair
Uma vez a cada quinze dias, dona Iraci vai no Centro fazer compras. Compra tudo o que vê, a infeliz. Volta para casa com um monte de sacolas de plástico nas mãos. Tem um mau-gosto desgraçado. Sempre sobe no ônibus por volta das 4 da tarde, quando o coletivo ainda não está muito cheio. E dona Iraci gosta de viajar sentada. Também, com aquelas pernas varizentas. Ela se esparrama no banco, aquela gorda, e fica soterrada com aquele monte de sacolas.
Mas naquele dia, dona Iraci bobeou. Bem feito. A folgada passou pela catraca e quis se sentar lá na última fileira, na traseira do ônibus. Que erro terrível, dona Iraci! Lá foi ela, atulhada de sacolas, mastodôntica, em busca do banco vazio quando, de repente, o ônibus freou bruscamente. E veio voltando dona Iraci, de ré, catando cavacos de costas. Todo o caminho percorrido desde a catraca ela ia refazendo, só que agora sem rumo, sem nada para se apoiar. É, dona Iraci vai cair. Hoje, essa miserável cai.
"Estava tão próxima", pensava dona Iraci, "tão perto daquele banco. Maldita freada. Onde é que eu vou parar, meu Deus", se perguntava ela. "E se eu me machucar no tombo, Virgem Maria. Como é que vou fazer a janta hoje, como é que vou pegar o Diogo na creche. Também, a Amália encosta, viu. Arruma filho sem pai e estrepa a mãe. Por quê ela mesma não pega o filho. Tudo nas costas da avó besta aqui".
Dona Iraci reclamava em pensamento, mas isso não a ajudava. Amaldiçoar os paspalhos dos passageiros que não faziam nada para ampará-la não evitava o destino final. E bem que ela merece um destino trágico. "A catraca. Jesus amado, vou rachar o coco na catraca. Ou então vou quebrar os dentes em alguma quina de banco. Não tenho dinheiro para ficar colocando dente novo não." Dona Iraci, dona Iraci... A senhora não toma jeito mesmo. Prestes a se estabacar e pensando em miudezas. Mas seu pensamento é miúdo, né, dona Iraci? Miudezas vão se espalhar todas pelo piso do ônibus. Os colares de contas vão se esfacelar, aquele jogo de copos americano vai virar caquinhos, o lençol barato vai rasgar.
É, dona Iraci, não tem jeito, a senhora vai cair. Vai se esborrachar no chão como um saco de batatas, vai se estatelar no piso do ônibus, vai virar os cambitos pra cima, vai dar vexame na frente de desconhecidos, mostrar a anágua, a calçola, tudo, dona Iraci.
Mas dona Iraci merece esse tombo. É reclamona, maledicente, fofoqueira. Espalha mentiras sobre os vizinhos. Tem vergonha da filha que é mãe solteira, vive jogando isso na cara da coitada. Agora a freada do motorista fará justiça. Dona Iraci, com todas as suas tranqueiras, vai pro chão, vai ruir, vai desabar como um prédio velho. Vai dona Iraci, cai logo, desgramada. Tomara que trinque a bacia, que pise colocar pinos no braço. Senão, do que terá valido subornar o motorista do coletivo, pagando para ele dar essa freada quando a filha da mãe dessa xexelenta passasse pela catraca. Ah, Dona Iraci. A senhora me paga, diaba velha. Todas as mentiras que espalhou de mim na vizinhança, todas as insinuações maldosas, todos os prejuízos que sofri. Pagará com juros. Hoje Dona Iraci vai cair.
domingo, 1 de junho de 2008
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6 comentários:
vc não tem mãe não, é? (heheheheh)
dona iraci deve ter se esborrachado inteira...
Gostei muito, com o passar do texto o meu desejo também foi vê-la de encontro ao chão, ao certo não sei porquê, mas nas entrelinhas da vida nos deparamos com fiuras como essa tacanha senhora.
Gostei da forma rasgada, sem pudores, palavras que deixam puritanos no mínimo corados e que são capazes de ativar um intenso potencial de revolta.
Bem escrito.Publicou em algum lugar?
abraço!
Adorei!
Recomendo Dona Iraci a se mudar de perto da sua casa, hehehe. Mas bem que ela mereceu...
kkkkkkkk Adoro um mal-feito, como diz minha mãe...Eu tenho!kkk
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