Crônica publicada no jornal O Popular no último dia 7 de julho
O maluco, obsessivo, libertino, genial Paul Gauguin! Que surpresas suas tintas, suas cores e seus arrebatados amores podem esconder, francês selvagem! Entre os impressionistas, o meu preferido sempre foi Renoir, pelo alumbramento de suas telas. Depois vinha Monet e sua visão de catarata, borrarndo jardins e lagos em murais extraodinários. Degas e suas bailarinas também me chamavam a atenção, mas Paul Gauguin não. Será por quê? Talvez porque todos temos a tendência atávica de lhe fazer injustiças.
Mas agora Gauguin me conquistou, ainda que tardiamente. Afinal, não foi assim com críticos, colecionadores e museus? Acabo de ler El Paraíso en La Otra Esquina, do peruano Mario Vargas Llosa. O romance conta a vida de Gauguin e de sua avó, a combativa e utópica Flora Tristán que, não obstante esse nome, era francesa também. O interesse de Vargas Llosa se deu porque os dois tinham estreitos laços com o Peru, chegando a viver por lá em diferentes momentos de suas vidas.
A trajetória de lutas e sacrifícios da feminista Flora é muito interessante, com direito a um bate-boca com Karl Marx em uma tipografia de París e a uma tentativa de assassinato de seu ex-marido. É inevitável, porém, não se deixar afundar nas loucuras e no gênio de Gauguin. Vargas Llosa, nessa obra que não pode ser definida senão como maravilhosa, nos enreda em uma existência louca, muito louca. Gauguin levou a vida em duas partes. Na primeira, teve uma educação católica, passou uma juventude sem privações, serviu à marinha francesa, viajou o mundo – esteve até no Brasil –, casou-se, teve filhos – um monte deles – e chegou a trabalhar na Bolsa de Valores de Paris, onde ganhou dinheiro que custeou sua até então vida burguesa.
Quando descobre os pincéis e as tintas, depois dos 30, ele se transforma em um dos pintores mais inquietantes de sua geração. Melhor dizendo, o mais inquietante e o mais inquieto, mais até do que seu amigo fraterno Vincent Van Gogh, com quem teve uma relação afetuosa e conturbada. Culpa-se Gauguin pelo declínio final da mente do gênio holandês, com sua automutilação – a orelha não teria sido decepada em uma briga corporal entre os dois? – e seu suicídio. Mas isso são fofocas de ateliê. O que fica de Gauguin é a imagem de um homem exasperado, obcecado por um Paraíso para o corpo e o espírito, para a arte em estado puro que só seria encontrado na exótica Polinésia Francesa.
Os aparentes exageros de Gauguin em suas telas, em que as cores, de tão fortes, até agridem, se explicam por sua paixão, por seu ardor. Tudo é quente e desesperado. Tudo é fascinantemente atroz, urgente. Tudo é solar demais. Vargas Llosa descortina os segredos dessa ardência e fala de quadros tão incompreendidos quando pintados e tão celebrados depois que Gauguin morreu só, abadonado, em uma miséria horrível e repugnante nas Ilhas Marquesas, em 1903, vítima da sífilis que lhe corroeu o corpo. E assim temos outra mirada de telas como De Onde Viemos? Onde Estamos? Onde Vamos?, Nevermore, Van Gogh Pintando Girassóis e os espetaculares Um Demônio Vigia a Menina – ou Manao Tupapau em língua maóri – e O Feiticeiro de Hiva Oa.
A sensualidade de Gauguin, com seus homens-mulheres polinésios (em que o sexo das figuras é indefinido), suas musas nuas expondo seus sexos, seus pescadores de tangas, seus guerreiros tatuados, deuses negros de peitos túrgidos, ancas enormes, coxas roliças fizeram com que a arte deste francês expatriado ofendesse a Igreja e o indispusesse com amigos e discípulos. Coxo depois de uma briga, pai ausente – nunca teve grande amor por nenhum de seus oito filhos –, promíscuo, intransigente e sonhador, Gauguin tinha o espírito de um artista pleno de projetos irrealizáveis. Como bem diz o título do livro de Vargas Llosa, ele achava que o Paraíso estava na outra esquina, na outra ilha, no outro lado do mundo. O homem Gauguin nunca o encontrou. Já o pintor Gauguin traduziu esse Éden em telas que ofuscam a vista e as convenções.
Um comentário:
Vontade de ler esse livro do Llosa, hein.
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