segunda-feira, 21 de junho de 2010

Em homenagem a Saramago

Imaginação irrefreável


"Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco." Com essa frase – na verdade, duas, com a pontuação saramagueana –, José Saramago começa a narrativa do belíssimo O Conto da Ilha Desconhecida. Uma obra arquetípica da produção detalhada e arrojada de um autor que tinha o dom de dominar a prosa. Na narrativa, o personagem quer viajar, conhecer, se encantar por paragens desconhecidas, tal qual o escritor quando cria, tal qual o leitor quando se deixa seduzir. Mas são tantas as dificuldades desse candidato a viajante... Tal qual o escritor, tal qual o leitor.

É então que começamos a perceber que o mundo é mais que só a realidade. Ele também é sonho, ele é destreza da imaginação, ele pode ser belo até mesmo em seus revezes. E tal qual o escritor que encontra a chave de sua ficção, o personagem se deixa levar pelos elementos que o cercam,; tal qual o leitor que não encontra barreiras para a paixão que encontra na vida alheia a que tem acesso nas páginas que consome vorazmente, o viajante percebe que não há amarras que o prendam, não há convenções que o cerceiem, não há jugos que o submetam. Escrever, ler e viajar são sinônimos de viver. Na obra de Saramago, esses verbos são um só.

Muito se fala de seu livro mais polêmico e não é para menos. O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi boicotado em Portugal e vendeu mais de 300 mil exemplares no Brasil. O autor se sentiu devedor de tanto carinho e elegeu a ex-colônia de sua terra natal como "uma segunda casa". As circunstâncias que cercam o romance fazem-no mais famoso, mas eclipsam o que ele tem de melhor. Ele e muitos outros livros de Saramago. Seus livros, em diversos gêneros, trazem gravado o signo da genialidade. As polêmicas são secundárias, frutos de maus leitores.

As parábolas e as metáforas de Saramago não são deste plano, comformem-se os materialistas! Isso está implícito na construção textual ambivalente, na sutileza de sentidos disfarçados, na crítica realizada com elegância e contundência. Ele fez Jesus perder a virgindade em uma noite de amor com Maria Madalena, em que o prazer e não o instinto de reprodução guia os dois amantes. Ele imaginou a morte fazendo greve! Ele falou de um Portugal mítico e verossímil, de gente de hábitos anacrônicos e situações reveladoras de injustiças.

Analisar o capitalismo à luz de um mito platônico, transformar a cegueira em colírio que ajuda a ver melhor a alma humana, tomar um heterônimo de Fernando Pessoa para representar sentimentos tão familiares a todos nós foram algumas das estripulias do escritor. Saramago sabia exatamente a dimensão da literatura, de suas potencialidades, de seus entrechos, de seus descaminhos deliciosamente sinuosos. Tanto sabia que explorava cada desvão, reinventando, relendo, refazendo tudo e todos. Aos que não conhecem essa prática: muito prazer, eis a criação literária!

Sorte nossa que Saramago gostava de escrever e nos deixou 30 obras, além de alguma coisa inédita que possivelmente ainda deve ser publicada. Sua produção é uma piscina em que podemos mergulhar de ponto, pois é profunda. E que delícia é se afogar numa prosa tão inquieta e instigante, tão provocadora e doce, tão destemida e cândida. Magicamente esquizofrênica, sua literatura há muito tempo se transformou em marco. Uma referência inescapável para quem deseja escrever, para quem deseja ler, para quem deseja viajar.


Texto publicado no jornal O Popular de 19 de junho (sábado),
na cobertura da morte do autor português José Saramago

2 comentários:

Marina disse...

Muito bom, Roger! Parabéns! Me empresta O conto da Ilha Desconhecida! Prometo que não rasgo, não sujo e, pasme, devolvo!

Poetisa (Helena) disse...

Gostei muito do seu blog e das suas postagens, vou seguir-lo. Se puder, entre no meu blog:
escrevoparaviver.blogspot.com