quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Escada Rolante



Um pedaço de metal dentado. Um pedaço de metal dentado subindo ou descendo atrás de outro pedaço de metal dentado. Eles nascem do nada e somem no nada. Um após o outro. Um após o outro. Um após o outro passa um homem atrás de outro homem. E uma velha, e um menino, e uma mulher insegura que quase cai de cima do pedaço de metal dentado. Eles surgem do nada e somem no nada. Um após o outro. Um após o outro. E quem repara no metal dentado? E quem percebe a velha que subiu no metal dentado com suas juntas doloridas, seus cabelos brancos de tristezas e frustrações? E quem repara no homem imponente e bem vestido que está sobre o metal dentado, subindo, meio suspenso no vão, pensando voar nesse espaço que divide com uma velha de juntas doloridas que desce em direção contrária, com suas tristezas e frustrações que tinta de cabelo não pode disfarçar?


Vem o menino arteiro, que se soltou da mão da mãe relapsamente escandalosa, que grita – Thiaaaaaaaaaaaaaaago! – e chama a atenção do homem que parecia voar sobre um mísero pedaço de metal dentado que se repete. Um metal que tem fome do dedinho impertinente do Thiago, o menino que um dia vai subir sobre um pedaço de metal dentado e imaginará estar voando. Mas a mãe relapsamente escandolosa, que um dia será uma velha de juntas doloridas e cabelos de uma brancura triste, acode antes que o metal dentado faça uma vítima e desconte em Thiago sua ira de ser pisado por tantos homens voadores, mães relapsas e velhas tristes e doloridas todos os dias.


Nenhum deles olha para o metal dentado, a não ser quando sobem e quando descem, menos Thiago, que acabou caindo na descida – não tem jeito, ele teria mesmo que se machucar com uma mãe tão relapsa assim. Mas quem é Thiago, coitado?! Ainda uma criança. Suas juntas ainda não doem, seus cabelos ainda estão escuros, suas grandes frustrações e tristezas resumem-se a não poder brincar mais com os sucessivos pedaços de metal dentado que transportam pessoas doloridas, relapsas e que pensam voar. Ele é o único que não voa, que não dói, que não negligencia entre um pedaço de metal dentado e outro. É o único ali que percebeu o metal dentado, mas que não reparou na irresponsabilidade da mãe, nas dores da velha, na arrogância do homem voador. Mas o metal dentado percebeu e percebe cada um que nele pisa, que sobe e que desce, num movimento constante de velhas, homens, mães e meninos.


A velha, o homem, a mãe e o menino sumiram e agora vem a jovem vendedora da loja de artigos esportivos que vê, ainda do alto, já pisando no pedaço de metal dentado que surgiu à sua frente, um rapaz bonito e forte, de óculos escuros, que sobe em direção contrária. Ele aprecia seu próprio corpo atlético, arruma a manga da camisa apertada que vestiu e que salienta um bíceps artificialmente inflado. A moça desce e seu olhar cruza com o do rapaz fortão, mas o olhar dele está direcionado à coroa enxuta que vem atrás da vendedora, em um vestido estampado meio esvoaçante. Repara bem na roupa, nas pernas torneadas, mas logo se vira para o outro lado do vão. São vidas em três pedaços de metal dentado que compartilham o ordinário hábito de esperar subir e descer, movendo-se imóveis.


Daqui a pouco, a vendedora vai se encontrar com a irmã relapsa e seu sobrinho Thiago, o menino mais encapetado que conhece. A mulher de vestido marcou encontro com sua mãe de juntas doloridas e cabelos brancos de tristezas e frustrações. O rapaz forte também tem um encontro, só que com seu namorado, um homem que parecia voar instantes atrás. Quanto ao pedaço de metal dentado ele vai continuar a transportar inocências, segredos e incongruências. Para cima e para baixo. Um após o outro. Um após o outro.

2 comentários:

Marina disse...

Genial...Eu já prendi o sapato no metal dentado quando era pequena. Por causa disso, sempre tenho a sensação de que vai acontecer de novo...

Pablo Alcântara disse...

Aí, Rogério, esse texto tem o ritmo de uma escada rolante.