segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

"Essa rua tá estreita"



"Essa rua tá estreita..."
E vai o pau d´água, o pudim de cachaça, o pé de cana barbeirando no meio da via pública. É Deus que não deixa ele dar com as fuças na calçada. Vai desviando de lixeiras, vai espantando cachorros que latem assustados, vai escorando nos postes, pegando fôlego para continuar. Vai apalpando os bolsos já sebentos das calças já largas que cobrem um corpo já combalido pelo vício, procurando algo que já não possui.

É sempre um homem de muitas casas. Cada boteco, uma morada. Cada dose conquistada de um cliente incauto ou louco para se ver livre da encheção de saco dos pedidos feitos em língua dormente, uma vitória. É sempre um homem que acumula muitas vitórias diárias.
Também é um homem que tem freqüentes visões do paraíso. Entra nos bares e passa o olho mole e remelento, vermelho de tanto álcool, por prateleiras em que rebrilham o que mais deseja: a cachaça.

O bêbado de rua não reclama da cama, que pode ser qualquer coisa. Um pedaço de papelão, uma mesa de sinuca que dorme no alpendre de um bar, um cantinho da sarjeta. É uma pessoa que valoriza cada centavo, porque cada centavo equivale um tantinho mais de pinga no copo. É um homem que tem muitos amigos, afinal, chega com aquela intimidade grudenta em qualquer desconhecido que lhe atravesse o caminho.

É também um homem religioso, sempre guarda um pouquinho pro santo. Não para os filhos que precisam ser sustentados pela mãe ou por uma das avós, que quase morrem de trabalhar para comprar leite e pão para a molecada. Mas para o santo, para esse não falta. E o bêbado se sente o homem mais digno do mundo ao jogar um bocadinho da pinga no chão, comove-se com sua própria grandeza.

O bêbado é um homem de opinião e a dá sempre quando ninguém a pediu. Costuma pegar o bonde andando e, geralmente, cai. Mas cair, de alguma forma, faz parte de sua rotina. Joelhos e cotovelos já estão para lá de acostumados com a falta de equilíbrio do resto do corpo. O pinguço gosta de palpitar sobre política, sobre economia, sobre futebol e, se deixam, até sobre a mulher do próximo. "É uma vagabunda!"

Ah, sim, o bêbado também apanha. Do marido da "vagabunda" ou de qualquer outro que perde a paciência com seu estilo entrão, com seus trejeitos de atrevimento, do jogador de bilhar que não agüenta mais os comentários inconvenientes em torno da mesa, do freguês já saturado de tanto ouvir do cachaceiro que ele gosta de beber sim e que ninguém tem nada a ver com isso; que sua saúde é de ferro, omitindo que já bota os bofes pela boca pelo menos uma vez ao dia e que já não agüenta de dores nas juntas.

O bom de copo toma no frio para esquentar, no calor para refrescar, no domingo porque é dia de folga, na segunda para dar coragem, na quarta porque trabalhou muito, na sexta porque é sexta. Não faltam justificativas para encher a cara, fazer caretas quando a pinga desce rasgando, para se gabar, já embriagado, de que não fica bêbado nunca, que é mais forte que um touro; que quando quiser parar, pára; que é dono de seu destino.
O pau d'água, o pudim de cachaça, o pé de cana é ou não é uma instituição? Uma instituição que mal cabe em si. E mal cabe na rua também...
"Essa rua tá estreita..."

Um comentário:

Pablo Alcântara disse...

Rapaz, o goró vendido por todo lado é uma das maiores hipocrisias da gente. Ah, e isso me faz lembrar as propagandas de cerveja na TV. Tão cada vez piores.