quinta-feira, 29 de abril de 2010

Oração dos panetones

Crônica publicada em O Popular no auge do escândalo do governo Arruda, em Brasília, inspirada na cena dos acusados rezando e agradecendo a propina, mostrada na Rede Globo


Em um gabinete escuso de Brasília – será que lá tem algum gabinete que não seja escuso? –, um grupo de engravatos se reúne para orar e agradecer as dádivas de Deus.

Meu senhor todo poderoso, sabemos que somos imperfeitos, meu Deus, e por isso agradecemos sua ajuda nesta tramoia dos infernos que acabamos de realizar neste escritório. Pedimos sua bênção, meu Senhor, para que outras propinas apareçam em nosso caminho, iluminando nossa saga rumo à luz, já que a próxima concorrência envolve a estatal de energia e pegar uns 20% de comissão por lá seria muito bom, Meu Deus.

Agradecemos por não nos desviar de nosso caminho, que dá direto nos cofres públicos, onde assaltamos o dinheiro pago por seus filhos, meu Senhor, aqueles filhos que não têm atendimento médico decente nos postos de saúde, que não têm escolas e creches de boa qualidade, que não contam com segurança pública e não têm muita esperança nesta vida, meu Deus. Pedimos por estas almas. Pedimos que elas continuem a votar naqueles que as achacam e que nos ajudam a enriquecer ilicitamente, que permaneçam acreditando nas promessas falsas, nas mentiras que nossos homens públicos, meu Deus, nossos, e só nossos, representantes dizem a eles todos os dias.

Agradecemos a graça desta comissão de 30% para o governador, meu Deus, e mais 30% para o vice-governador, meu Deus, e mais 20% para o assessor de imprensa meu Deus, e que nunca falte pão e verba pública nesta mesa onde nos refestelamos em maracutaiais e sujeiras, que não se ausente o vinho importado de nossas recepções vips, regadas a falta de escrúpulos e indecências. Oh, meu Senhor, que sua mão abençoe este dinheiro imundo que conseguimos fraudando concorrências, extorquindo empresários, tirando dos mais pobres.

Que o Senhor nos proteja de nossos inimigos. Que a Polícia Federal e o Ministério Público, obras e braços de Satanás, jamais nos alcancem. Que estejamos livres de escutas telefônicas e câmeras escondidas, que nossas contas no exterior jamais sejam encontradas, que nossas declarações fictícias de renda nunca caiam na malha fina, que se afastem de nós a Receita Federal e os promotores de Justiça. Livre-nos, meu Deus, de operações policiais com nomes estranhos, que nos poupe de algemas nos pulsos e blusões cobrindo nossas cabeças nos momentos das prisões. Oh, meu Deus, que nos salve de inquéritos e denúncias, que nos exima de qualquer culpa e que sempre nos dê um bode expiatório para que possamos estar libertos e voltar a assaltar o Erário.

Mas se o Senhor Meu Deus achar por bem nos testar, e se aparecermos no Jornal Nacional escondendo propina nas meias e na cueca, que nos mande, Oh Senhor, bons advogados, homens prontos a distorcer os fatos e a nos amaciar as punições. Que nos envie, oh Meu Deus, muitos habeas corpus para que não mofemos na cadeia como delinquentes desclassificados, gente sem berço que passa anos no xilindró por roubar bem menos que nós. Meu Senhor, que estes advogados sejam amorais o suficiente para cooptar e ameaçar testemunhas e que tenham livre trânsito no Supremo Tribunal Federal para que decisões que nos favoreçam não tardem a sair.

Oh, meu Deus, agradecemos ao senhor por nos permitir roubar tanto, por nos dar a chance de ficar milionários, por nos possibilitar gastar o dinheiro dos pobres em mansões no Lago Sul, em Miami, em férias na Europa, em roupas e joias caras, em cavalos de raça e carros importados. Nas nossas Mercedez, Porsches e Ferraris, meu Deus, já pregamos adesivos: Foi Deus quem me deu. Só não informamos que o governador, o vice e o tesoureiro da campanha também ajudaram no presente divino.

Com esta oração, meu Senhor, queremos demonstrar nossa gratidão por viver em um País como o Brasil, onde políticos corruptos não são devidamente punidos, onde gente com dinheiro não fica muito tempo na cadeia, onde a impunidade impera nas altas rodas.

Agora, vamos cantar em seu louvor:
“Deus está aqui, aleuluia. Tão certo como os meus 20%, aleluia. Tão certo como o caixa 2 da campaaaanha. Tão certo como eu posso roubar e ninguém vai me punir.”

terça-feira, 27 de abril de 2010

Mais Top Five

Top Five (Dos que tive o prazer de entrevistar)

1. Ariano Suassuna
Pela grandeza de sua gentileza

2. Ana Miranda e Zuenir Ventura
Pelo bacalhau delicioso que comemos durante nossa saborosa conversa

3. Lygia Fagundes Teles
Por ser uma dama e ter me chamado de "meu amor"

4. Moacyr Scliar
Por não ter estrelismo e pela atenção ilustrada em um livro presenteado

5. Adriana Falcão
Pelo bom humor e por ter me revelado a inspiração para o Agostinho, da Grande Família


Top Five (Momentos da carreira)

1. A viagem ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas (MG)
Por ter visto Guimarães Rosa andando por lá

2. A matéria sobre a estrada entre Goiânia e Brasília
Por ter conhecido quem está à margem

3. Entrevista com Fernando Henrique no Palácio do Planalto
Por sentir que estava testemunhando um pouquinho da história

4. As duas coletivas com Lula, antes de ele ser presidente
Por sentir que estava testemunhando um pouquinho da história

5. O encontro com Tom Wolfe na Bienal do Livro do Rio de Janeiro
Pelo autógrafo dado e por me certificar que ele existe


Top Five (Das grandes reportagens - não entram as dos amigos)

1. Sobre as vendedoras do Avon (Dorrit Harazin - Revista Veja)
Pela genialidade da pauta

2. Sobre o preconceito dos alemães em relação aos turcos (William Waack - Revista Veja)
Pelo grande domínio da linguagem

3. Sobre pedofilia (Délis Ortiz - Rede Globo)
Pela maneira precisa de abordar tema tão complicado

4. Sobre a construção da ponte Verrazano-Narrows (Gay Talese - livro Fama e Anonimato)
Pela persistência na notícia

5. Sobre as religiões no Rio de Janeiro (João do Rio - livro Religiões no Rio)
Por um jornalismo gonzo que não compromete o resultado da reportagem

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Top Five

A gente tem uma tendência danada a classificar tudo em listas. Pois aí vão algumas das minhas.

Top Five (Livros)

1. Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)
Pela poesia em forma de sertão

2. Dom Casmurro (Machado de Assis)
Pela dúvida que nunca cessa

3. Os Irmãos Karamazov (Fiodor Dostoiévski)
Pela engenhosidade genial do enredo

4. Os Miseráveis (Victor Hugo)
Pelo mergulho na alma humana

5. Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez)
Pela subversão da realidade e das coisas do mundo


Top Five (Compositores)

1. Chico Buarque
Por encontrar sempre a palavra certa

2. Gilberto Gil
Pela originalidade infindável

3. Renato Russo
Por dizer as coisas que a gente quer dizer

4. Cazuza
Pelo romantismo sem melaço

5. Jackson do Pandeiro
Pelo ritmo e pela malemolência


Top Five (Atuações)

1. Fernanda Montenegro (Central do Brasil)
Por simplesmente estar perfeita

2. Al Pacino (Perfume de Mulher)
Pelo tango bem dançado

3. Paulo Autran (Terra em Transe)
Pelo libelo que fala muito do Brasil

4. Christoph Waltz (Bastardos Inglórios)
Pelo detalhe de cada gesto

5. Robert DeNiro (Os Intocáveis)
Por um Al Capone inesquecível

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Esclarecimentos sobre o Amapá

Uma crônica de minha autoria publicada em O POPULAR no dia 7 de abril gerou polêmica no Amapá, estado aludido no texto. Recebi, em meu e-mail pessoal, e também por meio de comentários em meu blog, diversas reações iradas ao trabalho, tachando-o de desinformado, ignorante e preconceituoso. Muitas dessas manifestações referiam-se à crônica como uma matéria jornalística ou um artigo de opinião.Quero, portanto, prestar os devidos esclarecimentos não só aos leitores deste jornal, como também à população amapaense que se sentiu ofendida.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que nunca houve a intenção de atacar o povo do Amapá. Na crônica, quando “é posta em dúvida” a existência do Estado, obviamente que se tratava de uma afirmação fantasiosa, uma vez que é impensável alguém dizer, seriamente, que determinada unidade da nação não existe. Seria o negar o óbvio ou defender que o mar não é salgado ou que o Sol gira em torno da Terra. Quem quer que diga que o Amapá não existe, mesmo em uma conversa informal, só pode estar brincando com seu interlocutor. Pelo menos é assim que eu encararia se alguém me dissesse ou escrevesse que Goiás não existe.

Ao dizer, logo no início do texto, que “duvidava” da existência do Amapá, faço automaticamente o convite ao leitor para sair, em alguma medida, da realidade. O absurdo da afirmação suspende os planos da lógica no restante da leitura. Esta, aliás, é a dinâmica da crônica, gênero híbrido que mistura o real e o ficcional em uma narrativa que foge dos parâmetros tradicionais do jornalismo. Como um texto que mistura discursos, a crônica busca referências na realidade para, justamente, subvertê-las de alguma maneira ou então supreender seus leitores com o elemento inesperado, da ironia e da fantasia. Isso não ocorre, por exemplo, em reportagens e artigos de opinião, restritos que estão à busca do relato da realidade palpável.

Ao tomar o Amapá como tema de meu texto, o objetivo não era denegrir o Estado e sim ironizar, a partir dele, mazelas que são de todos nós brasileiros, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, do Ceará ao Acre, de São Paulo a Goiás. Quando digo que os escândalos políticos não existem no Amapá, estou salientando exatamente o contrário, que eles existem em toda parte, indiscriminadamente, tanto que cito um político que tem se envolvido em vários deles nos últimos tempos. Quando falo da goleada do Goiás sobre o São José, estou, na verdade, pegando no pé do time goiano, que tem dificuldade em vencer seus adversários regionais, numa provocação caseira.

Quando se publica um texto, a reação do leitor é legítima, desde que dentro dos parâmetros mínimos de civilidade. Entre os muitos comentários recebidos, vários são críticas pertinentes, que precisam ser levadas em conta. Aqui faço um mea culpa por ter, mesmo que involuntariamente, atingido a identidade de cidadãos amapaenses e agradeço as mensagens que ressaltam possíveis erros cometidos, pelos quais peço desculpas. Mesmo o gênero crônica, como muitos disseram, não permite excessos e me penitencio por aqueles que tenha cometido.

Há, porém, mensagens – infelizmente em maior número –, que partiram para ataques pessoais, desqualificando a mim e a meu trabalho de forma chula e irresponsável. Entre essas manifestações de desequilíbrio, algumas mencionam até ameaças físicas. Lamento profundamente que tanta gente só encontre o xingamento como o melhor argumento para defender sua terra. Em redes sociais, comentários deram lugar à incitação ao ódio, o que é lamentável, muito mais que qualquer crônica equivocada.
Entendo que a difusão do texto no Amapá como foi feita, sem a devida contextualização, de forma sensacionalista, por meio de um recorte de jornal escaneado que retira todo o contexto da publicação original do texto – que é impresso na página do horóscopo e dos quadrinhos, mostrando seu viés literário – tenha contribuído para a percepção de que se tratava de uma agressão gratuita. Na internet, as pessoas se sentem mais corajosas para ameaçar e ofender. Em muitos dos recados deixados, os autores até admitem que estão escrevendo por comentários ouvidos e não pela leitura do texto em si.

Àqueles que criticaram o texto, agradeço. Àqueles que se sentiram ofendidos pela crônica, peço desculpas. Àqueles que me endereçaram ofensas, não tenho nada a dizer.

P.S.: Este é um artigo de opinião e não uma crônica. Portanto, não há nada fictício aqui.

Uma versão deste artigo será publicada no jornal O Popular

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A Carta Roubada

A Carta Roubada é o título de um conto do escritor Edgar Allan Poe, narrativa que inaugura a moderna literatura policial. No enredo, uma carta é surrupiada e escondida onde ninguém a encontra: no porta-cartas. A moral é que o que procuramos pode estar na frente do nosso nariz, no lugar mais óbvio, e ainda assim não conseguirmos perceber. Os detetives da ficção sabem disso e acham os culpados a partir do que é evidente.
Ficção é uma coisa, vida real é outra. Para quem conhece o conto de Poe, porém, é inevitável relacioná-lo com a ação do serial killer de Luziânia, que matou brutalmente seis jovens. No caso de Poe, transparece a genialidade do autor. No caso de Luziânia, esse argumento não pode ser empregado. O assassino confesso não tem QI acima da média, não é um mestre do ardil, não é um homicida refinado. É um homem que parece ter agido por impulso, não se preocupando em se desfazer das provas que o levaram à prisão. Ele agiu em sua vizinhança apenas uma semana depois de sair da cadeia por violentar menores. Não fugiu da cena de seus delitos, deu o celular de uma das vítimas às irmãs.
Por quê a prisão demorou tanto? Pelo que sei – de conversas com experientes policiais e investigadores – o primeiro passo para se elucidar um crime é encontrar seus padrões. Neste caso, eles eram as características das vítimas (adolescentes do sexo masculino) e o fato de os desaparecidos morarem no mesmo bairro. Não seria mais ou menos óbvio que a vizinhança fosse investigada? Não teria sido básico fazer um levantamento, saber se alguém estranho havia chegado ao setor naquele período? Desta forma, não seria grande a chance de um homem com o perfil de Adimar ser um suspeito? Ou será que essa investigação básica não foi feita desde o início, já que rapazes pobres desaparecem todo santo dia na região?
Este episódio necessita ser melhor explicado do ponto de vista da Justiça, da psiquiatria forense e da polícia, que demorou muito para pegar um assassino que morava próximo às vítimas, tinha antecedentes conhecidos e usou uma bicicleta em seus crimes. Se um homem com esse perfil consegue cometer seis homicídios sem ser capturado, o que esperar se um psicopata mais esperto e com mais recursos começar a agir?


Artigo publicado no jornal O Popular, em 14/04/2010

terça-feira, 13 de abril de 2010

Crônicas e reações

Desde que me tornei cronista, redigi alguns textos que geraram reações. Algumas positivas, outras negativas. Isso é normal, faz parte do jogo. Quem publica, se presta à avaliação do público, o que é salutar.

O lamentável, às vezes, é que esse julgamento se dá em parâmetros equivocados. Foi isso o que ocorreu com meu mais recente texto, uma crônica em que coloco em dúvida a existência do Amapá. Recebi e-mails, fui "elogiosamente" referido no twitter e também neste blog por cidadãos do Amapá indignados com minha "ignorância", meu "desrespeito" e minha "burrice".

Comentários normais, não fosse o fato de o texto ter sido lido, em quase 100% do que comentaram, de forma totalmente equivocada. Acharam que a crônica era artigo de opinião, reportagem jornalística ou coisa que o valha. Equívoco, e dos grandes.

Crônica é o resquício de literatura nos jornais e, portanto, não tem o compromisso com a verdade dos fatos como deve ter as matérias jornalísticas. A crônica também não exprime necessariamente a opinião de quem a escreveu, já que não se trata de um artigo. É um texto de ficção, que pode falar de atualidades e e se basear em fatos reais, ou não.

Já fiz crônicas em que ameaçava matar pinchers a pisadas. Matei algum? Claro que não. Já inventei uma personagem, a Dona Iraci, que é uma velha fofoqueira e maledicente. Ela existe. Não. Já falei sobre as mais diversas bobagens, ironizando ou brincando com questões que mexem com o imaginário coletivo. Penso tudo o que escrevi? Claro que não.

Com o Amapá ocorre a mesma dinâmica. Claro que sei que o Amapá existe. Ainda não estou esclerosado. Claro que eu conheço pessoas do Amapá. Tirei sarro delas. Claro que sei o que é ser discriminado. Goiás também é. Aliás, muitos dos comentários, esses nada cronísticos e sim raivosos e descontrolados, demonstraram os preconceitos das pessoas em relação a Goiás.

Quando se escreve uma crônica, com a liberdade de criação que ela permite, imaginamos que os leitores também terão a abstração do autor, entrarão em um mundo possível, mas não real. Literatura, não importa de que qualidade seja, aposta nesse acordo tácito. Machado não morreu para escrever Memórias Póstumas com seu "narrador defunto". Guimarães Rosa não se tornou um jagunço para poder criar as histórias de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. E mesmo Flaubert, que declarou que "Madame Bovary c'est moi" não era, ele próprio, uma esposa adúltera.

Aos mais ofendidos pela crônica, não peço desculpas: peço mais abstração. Na crônica, que tem espaço reservado no jornal, com anúncio em letras garrafais, no suplemento de cultura, para que não paire dúvidas a respeito de sua natureza, é necessário imaginar e não se ater ao pé da letra do texto.

Passo a moderar os comentários neste blog porque minha mãe não tem nada a ver com os que leram errado minha CRÔNICA.

Abraço aos seguidores deste blog.

OBS: Ah, e para que não pairem dúvidas, sei que o Amapá existe sim. Sei há muito tempo, muito antes do Google, que me foi tão singelamente indicado por muitos.